O que me levou a ler esse livro?
Pura curiosidade! Gosto de ler livros científicos e adoro o tema “evolução da humanidade”.
Por um lado, eu desconfiava de Sapiens: não é comum livros dessa categoria tornarem-se best-sellers, como aconteceu com esse livro.
Ele foi inicialmente publicado em hebraico (2011) e, três anos depois, em inglês. Hoje, em 2022, ele já está publicado em mais de 60 idiomas.
Por outro, adoro quando um autor consegue despertar a atenção do público em geral para esses temas. Só o fato de Harari ter conseguido isso já era o suficiente para conquistar a minha admiração.
Adiei muito a leitura – já são oito anos desde a publicação em inglês e sua repercussão mundial.
O motivo é que já li tantas boas publicações nessa área (entre os quais destaco Armas, Germes e Aço, de Jared Diamond, e O Domínio do Ocidente, de Ian Morris), que tinha certeza de que me decepcionaria.
Para minha surpresa, gostei. Embora Sapiens seja bastante diferente desses outros livros, me apresentou algumas ideias novas que justificaram a leitura.
Se elas são cientificamente comprovadas ou não, não sei. Fiz uma pesquisa rápida sobre a recepção ao livro e, embora tenha sido um sucesso de público, não foi tão bem aceito nos meios acadêmicos.
Cientistas respeitados dizem que, embora o livro seja correto em geral, algumas das ideias de Harari são apenas hipóteses com pouca base científica.
O que mais chamou minha atenção
Sobre os bebês humanos
Sempre me intrigou o fato de bebês humanos nascerem tão incompletos quando comparados com os filhotes de outras espécies e nunca tinha me dado ao trabalho de entender por que isso acontece.
Segundo Harari, isso é uma das consequências da nossa espécie, Homo sapiens, ter passado a caminhar em duas patas.
Ele diz que, para conseguir sustentar essa postura, o quadril do Homo sapiens estreitou-se.
Isso era um problema, já que outra característica de nossa espécie é um cérebro – e consequentemente uma cabeça – maior do que os encontrados em outras espécies.
A consequência é que muitas fêmeas e bebês morriam no parto. Sobreviviam aquelas que davam à luz bebês prematuros e incompletos – ainda incapazes de ficar em pé (como acontece com filhotes de outros mamíferos) e, muito menos, alimentarem-se sozinhos.
Com o passar do tempo, esses bebês “prematuros”, que dependem dos cuidados da mãe nos seus anos iniciais, passaram a ser o normal na nossa espécie.
A falsa ideia de que nossos antepassados alimentavam-se melhor do que nós
Sem pensar muito, a gente costuma criticar nossa alimentação atual e dizer que, no passado, as pessoas alimentavam-se melhor.
Bem… isso é uma meia-verdade.
Harari chama atenção para o fato de que houve uma piora radical na qualidade de nossa alimentação quando o ser humano deixou de ser caçador-coletor e passou a viver em sociedades agrícolas.
Enquanto caçador-coletor, o Homo sapiens alimentava-se do que encontrava: uma imensa variedade de animais e vegetais, disponível em grandes quantidades.
E, se por qualquer motivo, a comida escasseava, sua natureza nômade levava-o a migrar para regiões onde os alimentos fossem mais abundantes.
Isso mudou radicalmente com o estabelecimento de sociedades agrícolas.
A produção de grãos e a criação de animais precisava de terras cultiváveis e permanência no local em que eles estavam sendo produzidos ou criados.
Se, por um lado, as colheitas geravam mais alimentos, por outro, a variedade (e, consequentemente, valor nutricional) do que se comia era menor.
Além disso, ao deixar de ser nômade, o ser humano tornou-se dependente das colheitas. E anos de colheita ruim geraram a morte de milhões de pessoas ao longo dos séculos seguintes.
É assim até hoje em áreas menos desenvolvidas do planeta.
Moral da história: se quisermos criticar a qualidade de nossa alimentação de hoje e comparar com a qualidade do que comiam nossos ancestrais, é bom lembrar que, saudável mesmo, só a comida do tempo das cavernas, em que o ser humano alimentava-se de uma grande variedade de vegetais e animais em seu estado mais natural.
O impacto da evolução do homem sobre os outros mamíferos
Embora eu fosse bem consciente sobre o gigastesco tamanho da população de seres humanos sobre a Terra, o livro Sapiens me apresentou alguns números sobre os quais eu não tinha refletido muito antes.
Pra começar, foi a Revolução Industrial que fez com que saltássemos de uma população de alguns milhões (até 500 anos atrás) para mais de 7 bilhões.

Fonte: OurWorldinData
Mas nosso impacto na Terra não é apenas o fato de o Homo sapiens ter eliminado os outros hominídeos do planeta e multiplicado-se aceleradamente (para efeitos de comparação, existem hoje apenas cerca de 250 mil dos nossos “primos” chimpanzés).
Os números a que me refiro são outros: são os que refletem o impacto da nossa maneira de vida sobre outras espécies.
Os mamíferos que domesticamos multiplicaram-se muuuuuuito. Há1,5 bilhões de cabeças de gado sobre a superfície da Terra.
Já animais que não conseguimos domesticar praticamente desapareceram. Girafas, por exemplo, são apenas 80 mil.
Nós, seres humanos, mudamos radicalmente também o equilíbrio entre os canídeos.
Enquanto cachorros (Canis familiaris), a espécie do gênero Canis domesticada pelo homem, são 400 milhões, os lobos (Canis lupus), não domesticados, são hoje apenas 200 mil.
A invenção do “indivíduo”
Eu já li muito sobre como a ideia do indivíduo é algo que surgiu a partir do século XVIII. Harari me deu alguns novos insights sobre esse assunto.
Em resumo, ele diz que o individualismo, ou seja, a ideia de que cada pessoa pode ser o que quiser, independentemente do que esperam sua família ou comunidade, foi uma invenção dos Estados e mercados para que seus propósitos pudessem ser atingidos.
Em outras palavras: até a Revolução Industrial, a maioria das pessoas viviam, relacionavam-se e envelheciam com seus familiares, em comunidades de pequeno e médio porte.
Ao longo de sua vida, todo o suporte necessário para seu sustento vinha desses grupos, fosse em questões de saúde, financeiras ou afetivas.
O Estado, embora já existisse na forma de reinos e impérios, exercia pouca influência sobre a vida cotidiana das pessoas e suas comunidades.
O desenvolvimento do capitalismo e a formação dos Estado-nação mudaram tudo isso.
O fortalecimento dos Estados dependia de pessoas dispostas a lutar e morrer por eles. Cobrar impostos já não era suficiente: era preciso desenvolver laços de lealdade.
Enquanto isso, o desenvolvimento industrial criava uma nova necessidade. Mais produção gerava lucro; o lucro era reinvestido, aumentando a disponibilidade de bens e serviços.
Gerar consumo desses bens e serviços passou a ser fundamental, pois era isso que, ao gerar mais demanda por mais bens e serviços, fazia “a roda do capitalismo girar”.
Mas família e comunidade eram barreiras para isso. Por um lado, em uma sociedade de troca, não havia necessidade de consumo.
Por outro, esse modelo de vida fazia com que a lealdade das pessoas fosse em relação a esses grupos, independentemente da vontade dos Estados e seus governantes.
Para que o capitalismo e os Estados-nação se desenvolvessem, era necessário romper os vínculos das pessoas com suas famílias e comunidades.
O individualismo, ou seja, a idéia de que cada pessoa deveria ser livre para fazer o que quisesse, quando quisesse, sem dever explicações à sua família e comunidade, foi a criação que possibilitou isso.
Estado e mercados tornariam o conceito de individualidade possível, “provendo comida, abrigo, educação, saúde, bem-estar, aposentadoria, seguros e proteção”. E, também, oportunidades de trabalho, de onde viria o dinheiro para pagar essa conta.
A ideia foi propagada de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Ideias do tipo “case com quem quiser, more onde quiser, trabalhe no que você quiser” passaram a ser divulgadas por meio de propagandas, das artes, do discurso estatal.
Comunidade e família não são mais necessárias: se você precisar de dinheiro para começar um negócio, pode ir ao banco; para garantir sua saúde, basta ter um plano de saúde; se precisar de apoio emocional, consulte um psicólogo.
Essa irresistível ideia de liberdade criou o mundo que temos hoje.
Namorados, que antes conheciam-se na sala de estar das famílias, agora consomem enquanto se conhecem, indo ao cinema, ao bar, ao restaurante.
Pais e filhos, que antes cuidavam uns dos outros, não apenas na infância e na velhice como também ao longo da vida adulta (com ajuda dos pais para abrir um negocio, ou dos avós para criar os netos, por exemplo), tem hoje uma experiência completamente diferente.
Crianças são educadas por babás e escolas, adultos na maioria das vezes afastam-se da família em busca de melhores condições de trabalho e idosos, quando incapazes de cuidarem-se sozinhos, são tratados por cuidadores e enfermeiros.
Com liberdade, sim. Mas, também, com perda da rede de segurança representada por comunidade e família.
A substituição da religião pelo capitalismo-consumismo
O Homo sapiens, moldado por uma evolução de milhares de anos, é, entretanto, um ser social.
Afastado da sua família e da sua comunidade, ele ainda precisava do convívio social e do aconchego provocado pela identificação com um grupo.
Esse vazio criado nos últimos duzentos e poucos anos foi sendo preenchido por novas comunidades, criadas pelos Estados e pelos mercados: respectivamente as nações e as tribos de consumo.
Juntos, Estados e mercados propagaram uma nova e revolucionária ideia: a de que consumir é bom.
A ideia de que, quando algo nos falta ou não está bem, é porque precisamos comprar algum produto (um novo casaco, comida orgânica, um objeto de decoração), algum serviço (uma massagem, uma sessão com o terapeuta) ou alguma “experiência” (uma viagem que vai abrir seus horizontes).
O consumo passou a ser associado com qualidade de vida e felicidade; um meio de nos conectarmos à nossa “tribo”.
Harari considera essa relação capitalismo-consumismo um modelo ético, e compara-o a uma religião. Que, segundo ele, é muito melhor do que todas as outras.
Enquanto cristianismo, judaísmo, islamismo, budismo, etc, prometem o paraíso no futuro para quem conseguir seguir padrões morais e éticos praticamente inatingíveis, o capitalismo-consumismo oferece o paraíso na Terra – e agora – para quem consome, seja a nova comida orgânica, o sapato de marca, a viagem para um lugar exótico.
E consumir é fácil! Nós fomos ensinados nos últimos duzentos anos a sentir-mo-nos satisfeitos e plenos ao consumir.
O consumismo é possível graças ao capitalismo, que produz uma gigante oferta de bens e serviços ao mesmo tempo que cria postos de trabalho que financiam mais consumo.
Esse sistema capitalismo-comunismo é considerado perfeito por Harari, pois ele “obriga” os ricos (capitalistas) a ficarem mais ricos, ao produzir mais. E, ao mesmo tempo, dá às massas o direito (e dever!) de satisfazer suas tentações e seguir suas paixões, comprando mais e mais.
Todo mundo feliz, e a roda continua a girar.
O que eu não gostei
No último capítulo, Harari começa a fazer especulações sobre o futuro.
Ele começa dizendo que, embora o ser humano já venha alterando a natureza há milênios, isso acontecia em pequenas dimensões. Cruzando uma espécie com a outra, mais ou menos como fazem as abelhas ao polenizarem flores (embora, no caso do ser humano, houvesse sempre uma intenção por trás das escolhas).
Harari continua dizendo que, atualmente, esse paradigma está mudando. E que, por meio de três diferentes tecnologias, o Homo sapiens está fazendo algo muito mais grandioso: alterando as leis da seleção natural.
As três tecnologias apresentadas são engenharia biológica (por exemplo, mudança de sexo por meio de cirurgia e tratamento hormonal), engenharia de cyborgs (alteração de seres humanos por meio da introdução de partes eletrônicas ou eletromecânicas) e engenharia de vida inôrganica (criação ou implantação de inteligência humana em computadores).
Entendo e concordo que o ser humano está alterando a teoria da evolução. E, embora considere os exemplos de Harari nas três áreas interessantes, me parece que suas conclusões são mais divagações do que tendências.
Ele aprofundou o tema em um livro posterior, chamado Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (publicado em hebraico em 2015 e traduzido para o inglês em 2016).
Por ter gostado de Sapiens, resolvi ir adiante e ler Homo Deus. Não valeu a pena. Trata-se de uma tentativa de projetar o futuro baseada em muitas suposições, muita imaginação e, na minha percepção, muito pouca conexão com a realidade.
Mas isso já é história para um novo post.
Conclusão
Gostei bastante de Sapiens e recomendo muito para quem não tem hábito de ler sobre evolução da humanidade mas tem interesse no assunto.
O livro é leve e faz uma boa revisão da história da humanidade, começando na época em que o Homo sapiens não era o único hominídeo na face da Terra.
Além disso, traz muitos exemplos palpáveis. Não é à toa que tornou-se um best-seller.
Ao contrário da minha expectativa, não era parecido com outros livros que eu tinha lido antes. E me deu alguns insights interessantes.
A ideia principal do autor ao longo do livro é de que foi a capacidade imaginativa do Sapiens que o diferenciou de outros animais, possibilitando a criação de um modelo de vida baseado em crenças e valores.
Essas crenças e valores foram sendo alteradas ao longo do tempo, até atingir o ponto em que estamos hoje, em que nossas vidas são regidas por uma ética capitalista-consumista, construída a partir do século XVIII e viabilizada pela cultura do individualismo.
O interessante pra mim ao ler Sapiens foi colocar a ideia de individualismo nesse contexto de capitalismo-consumismo.
Para mim, é fácil criticar o capitalismo, dizendo que ele estimula um consumismo desenfreado e desnecessário. Mas fica bem mais difícil criticá-lo ao perceber que ele também é responsável pela promoção do individualismo e de toda a liberdade pessoal que acompanha essa ideia.
Amo a possibilidade que tenho de ser livre e concordo que foi a crença no individualismo, motivada pelo capitalismo, que possibilitou isso.
Sapiens nos estimula a pensar: o amor que temos à liberdade é um valor nosso ou do meio em que vivemos? O quanto o crescimento em problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, vincula-se ao enfraquecimento das relações familiares e comunitárias, tão fundamentais para a sobrevivência de nossa espécie há até duzentos anos atrás?
Só o fato de Sapiens causar esse tipo de reflexão, na minha opinião, já justifica sua leitura.