Segóvia fica a menos de uma hora da capital espanhola e é uma ótima opção para um passeio de um ou dois dias pelos arredores de Madri.

Lá fica o aqueduto romano mais bem preservado da Espanha. Ele está em pé, sem cimento, há dois mil anos.

Embora ele seja deslumbrante, não é só ele que atrai turistas para a cidade.

Eles também vão até lá para ver o Alcázar (do árabe al qaçr), um palácio medieval pendurado num penhasco e cercado por dois rios (Eresma e Clamores) e um fosso.

Esse palácio é o monumento histórico mais visitado da região espanhola Castela e Leão (uma das 17 Comunidades Autônomas da Espanha).

Entre o aqueduto e o palácio fica a cidade medieval, uma das mais bonitas do país.

De um extremo a outro é uma caminhada de cerca de vinte minutos, passando por muitos prédios medievais e uma catedral do século XVI.

A catedral, por sua imponência, é conhecida como “a dama das catedrais”.

A região de Segóvia também é conhecida por sua culinária tradicional, uma das mais representativas do antigo reino de Castela (que deu origem à Espanha).

O prato mais famoso é, sem dúvida, o cochinilho (leitão) assado em forno à lenha. O restaurante mais tradicional se chama Mesón Candido e eu gastei algumas horas tentando descobrir o motivo de sua fama. Descobri e vou te contar em seguida.

A cidade também foi palco de momentos históricos importantes, entre os quais destaca-se a proclamação de Isabel I como rainha, em 1474. Ela foi a primeira grande rainha da Europa.

O detalhe é que, oficialmente, a herdeira da coroa não era ela, mas sim a sua sobrinha.

Hoje a cidade, que é considerada patrimônio histórico da humanidade, é uma das mais visitadas da Espanha. Vem comigo e você vai entender por quê.

Segóvia Antiga (até o séc V): dos Celtíberos ao Império Romano

Quando os romanos chegaram ao local onde hoje fica Segóvia dois mil anos atrás, já havia uma pequena cidade lá.

Passando por Segóvia, os romanos construíram uma estrada importante, que ligava algumas das grandes cidades do Império, como Lucus Augusti (atual Lugo) e Toletum (atual Toledo).

Fonte: Guarda Delantera

Como importante ponto de passagem, Segóvia ganhou a atenção dos romanos. A maior prova disso é o aqueduto que eles construíram na cidade, ainda em pé depois de dois milênios.

O aqueduto ia do do rio Frío, a 16 quilômetros do centro, até uma fortificação que protegia a cidade (o atual alcázar, ou palácio real).

O trecho mais famoso do aqueduto de Segóvia é essa área elevada.

Embora na maioria do trajeto o aqueduto seja subterrâneo, nessa área foi necessário construir uma ponte para compensar o vale natural entre uma colina e outra.

Essa “ponte” tem cerca de 700 metros de extensão. Os arcos centrais chegam a quase 30 metros de altura.

Para atingir essa altura, foi necessário construir dois níveis de arcos.

Ao todo, foram usadas 24 mil pedras gigantes de granito, com mais de uma tonelada cada.

Mas o mais surpreendente é que não há cimento entre as pedras.

O que mantém o aqueduto de Segóvia em pé é o cálculo perfeito dos engenheiros romanos, que construíram fundações de até 6 metros de profundidade e conseguiram obter um encaixe perfeito entre cada uma das pedras.

Equilíbrio é o que mantém o aqueduto em pé há dois mil anos.

Eu estive lá de dia e de noite. A sensação é super diferente e, na minha opinão, ver essa parte do aqueduto de noite é mais bonito.

O ramo principal do aqueduto vai até o palácio real.

E, segundo o áudio-guia que escutei na visita ao palácio, é por esse poço que aparece na foto abaixo que se puxava da cisterna a água que chegava no castelo via aqueduto.

No caminho, ao passar pelo centro da cidade, o aqueduto distribuia a água para a população por meio de uma rede de canais menores.

Embora o aqueduto de Segóvia não seja o maior projeto romano desse tipo, ele é um projeto bastante representativo da engenharia do império.

Além da ponte com seus arcos, é possível observar o desarenador, uma estrutura para remoção de areia e outros dejetos que vão sendo carregados pela água.

Para vê-lo, basta seguir o aqueduto pela lateral do restaurante Mesón Candido. Os arcos vão diminuindo à medida que a gente vai subindo a colina.

Aqueduto Segovia

Em seguida, os arcos se transformam em um muro e a gente vê uma casinha.

É o desarenador.

Continuando mais um pouquinho a gente chega ao “fim” do aqueduto (na verdade, o ponto onde ele foi interrompido quando deixou de funcionar, no final do século XX).

E pode espiar para ver o canal por onde a água corria.

Se você chegou até aqui, vale a pena atravessar a rua e visitar o antigo palácio de verão de Henrique IV.

O prédio, conhecido como Monasterio de San Antonio El Real, foi transformado em mosteiro quando Henrique foi coroado.

Hoje funciona um hotel lá, e o antigo claustro foi transformado em um restaurante que serve comida típica castelhana.

Uma última história sobre o aqueduto: a lenda sobre sua origem.

Ela vai te ajudar a entender por que existe uma estátua de diabinho tirando selfie na estrada que desce pro aqueduto 😉

Conta a lenda que, antes de haver um aqueduto, uma moça que trabalhava carregando água do rio para a fortaleza pediu ao diabo que a ajudasse, construindo um canal que trouxasse a água por ela.

Ela teria prometido que, caso ele conseguisse fazer isso em apenas uma noite, ela entregaria sua alma a ele.

Para o pavor da moça, o diabo estava prestes a conseguir. Desesperada, ela começou a rezar para a Virgem, pedindo que o dia amanhecesse uma hora antes.

Seu pedido foi atendido e o galo cantou uma hora antes do que o normal.

O diabo ficou com a última pedra na mão e, frustrado, abandonou a cidade (deixando o aqueduto 99,9% construído de presente).

É como homenagem a essa lenda que foi colocada uma estátua do diabo com a pedra na mão na beira da estrada.

Eu acho a escultura fofa. Mas ela causou polêmica na cidade. Um abaixo assinado com mais de 12 mil assinaturas tentou impedir sua instalação.

O escultor inspirou-se na polêmica pra escrever um livro (que ele está segurando nessa foto).

O Diabinho de Segóvia e seu criador, Jose Antonio Abella. Foto: Darío Gonzalo (El Correo de Burgos)

Outra referência à lenda é uma estátua da Virgem, que pode ser vista no alto do aqueduto.

Ela é uma réplica de um original que havia sido colocado lá no século XV. Quando a estátua foi retirada, atrás dela foi encontrada uma inscrição romana com a data e o nome do construtor do aqueduto.

Para mais informações sobre aquedutos romanos em geral – e o de Ségovia em especial – leia esse artigo do blog Now.

Segóvia Medieval (séc V a XV): Segóvia na Formação da Espanha Atual

Não se não se sabe muito sobre a história da cidade entre a queda do império romano (século V) e a reconquista cristã (ano 1079).

O que sabemos é que a cidade continuou sendo habitada, primeiro pelos visigodos (sobre os quais já falei no post sobre Toledo) e, depois, pelos muçulmanos.

Também desconfia-se que foram os muçulmanos que transformaram a antiga fortaleza em um palácio, já que, após a reconquista, os cristãos continuaram usando um termo originado no árabe para denominá-lo: alcázar, que significa palácio e vem do árabe al qaçr.

Os cristãos que reconquistaram Segóvia no final do século XI eram do reino de Castela e Leão, que, por essa época, também ocuparam outras cidades da região, incluindo Madri (1083) e Toledo (1085).

Muralha de Segóvia, uma das mais bem preservadas da Espanha

Em 1088 começa o processo de repovoamento cristão de Segóvia e, também, a construção de muros ao ao redor do alcázar. Acredita-se que a muralha tenha ficado pronta em 1122.

Durante esse período foi construída, do lado de fora dos muros, a igreja mais antiga ainda em pé na cidade: a de San Millán (cinco minutos a pé do aqueduto).

A muralha de Segóvia, embora tenha sido alterada e reconstruída ao longo do tempo, ainda mantém seu traçado original.

Ela é uma das únicas três muralhas medievais da Espanha que continuam inteiras (as outras são as de Ávila e Lugo).

Os muros de Segóvia tem uma extensão total de três quilômetros e uma altura média de 7,5 metros.

Das suas cinco portas originais, duas foram derrubadas para facilitar a expansão da cidade: a porta de San Martín (do lado da Casa de los Picos, da qual falaremos em seguida) e a porta de San Juan (próxima ao local onde fica a estátua do diabinho tirando selfie).

As três que continuam em pé são as portas de San Andrés, Santiago e San Cebrian. É mais ou menos essa a localização da muralha medieval na atual cidade de Segóvia:

Até o século XIV a muralha teve um papel importante na defesa da cidade.

Depois disso foi perdendo seu caráter defensivo e várias casas foram sendo construídas sobre ela ou ao seu lado.

Séculos depois, em 1941, toda a área dentro das muralhas (mais o aqueduto, que fica do lado de fora) foi declarada área de interesse histórico. Em 1985, a UNESCO declararia esse mesmo espaço como Patrimônio da Humanidade.

Isso levou a investimentos na restauração da muralha, hoje também um ponto turístico da cidade.

A porta mais monumental é a de San Andrés. Ela fica ao lado do bairro judeu, um dos mais bem conservados da Espanha, localizado atrás da catedral.

Na Porta de San Andrés existe um pequeno museu, o Centro de Interpretación de la Muralla.

Do outro lado da cidade medieval, a cerca de dez minutos a pé, fica a porta de Santiago:

Essa estradinha que a gente vê na foto é o começo da Cuesta de la Zorra.

Trata-se de uma trilha que vai em direção à Pradera (campo) de San Marco, o lugar de onde se tem a vista mais bonita do alcázar.

Quem segue pela trilha passa pela Casa Real da Moeda (da qual falaremos em seguida) e enxerga dois prédios medievais importantes: o Monasterio de Santa María del Parral (construído no século XV, hoje parte da Ordem dos Jerônimos) e a Iglesia de la Vera Cruz.

A porta de San Cebrian, bem mais discreta, fica numa rua pela qual os carros sobem do aqueduto para o alcázar.

É bem possível que você passe por ela quando estiver na cidade, praticamente sem reparar que está entrando nas muralhas.

A finalização da muralha, no começo do século XIII, possibilitou que a família real de Castela começasse a passar temporadas na cidade a partir do governo de Afonso VIII (1158-1214).

Residência Real: o Alcázar de Segóvia

Como falamos antes, quando os cristãos retomaram Segóvia (1079), já havia lá, na ponta de um penhasco, um palácio (al qasr em árabe).

Esse é o Alcázar de Segóvia, um dos pontos turísticos mais visitados da Espanha.

Naquela época, o alcázar era muito diferente do que vemos hoje.

Para simplificar o entendimento das várias épocas da construção, a planta abaixo (do guia de visitas ao palácio) ajuda.

As partes mais antigas são as salas com número 1, 2 e 6. Depois foram adicionadas as salas de número 7 a 10. Já no século XV foram construídas as salas de número 3 a 5.

Logo que a gente entra no prédio, no pequeno hall é recebido por um escudo de Fernando e Isabel, os reis Católicos (1479-1504):

Dali vamos para o Pátio de Armas (número zero). Ele existe desde o século XIII, mas o que vemos hoje é sua reconstrução no século XVI.

A próxima área do castelo a ser construída, salas 7 a 10, são do reinado de Afonso X (1252-1284).

Minha favorita é a número 7, chamada de Sala dos Reis.

Ela abriga a coleção de estátuas de reis iniciadas por Afonso X.

Há imagens de todos os reis espanhois desde Pelayo (século VIII), considerado o primeiro rei da Espanha, até Joana, que foi rainha de 1504 a 1555 mas nunca governou (foram seus regentes, sucessivamente, seu marido, seu pai e seu filho).

A ampliação do castelo no século XV integrou as salas mais antigas do palácio (números 1, 2 e 6) às novas salas (números 3, 4 e 5).

As antigas paredes externas passaram a ser paredes internas ligando as salas novas às salas antigas. Para iluminar as antigas, foram abertas janelas internas.

Por isso as duas áreas estão integradas, como você pode ver nessa foto.

No lado de cá, nas paredes laterais, ainda podemos ver alguns pedaços da antiga decoração.

Olhando pelo lado de lá, vemos o que era nessa época a parede exterior do castelo. O principal indicativo disso são os pontinhos pretos.

Essa é a origem do esgrafiado segoviano, técnica decorativa de paredes de alvenaria super popular na cidade.

A tradição segoviana começou no século XII, nesse castelo. Para disfarçar a argamassa unindo as pedras irregulares, foram colocadas as “sujeirinhas de ferro”, chamadas escórias, como elemento decorativo.

Mais adiante, a técnica evoluiu. Passou-se a dar relevo aos rejuntes, criando desenhos nas paredes.

Mais adiante, novo avanço: as paredes passaram a ser coberta com dupla camada de reboco.

A primeira cobria as pedras irregulares. A segunda era raspada criando estampas nas paredes.

É esse o popular esgrafiado segoviano, que vemos em diferentes estampas em um grande número de prédios da cidade.

Se você quer aprofundar-se no tema, espie esse artigo do blog Urban Networks.

Mas voltemos ao alcázar! Já que estávamos falando da antiga parede externa, aquela que virou parede interna dividindo as salas 1 e 4 da planta, vamos falar da sala número 4.

Ela foi construída por Catarina de Lancaster, que foi rainha regente de Castela entre 1406 e 1418, período em que seu filho, o rei Juan II, era ainda uma criança.

Hoje essa sala abriga uma pintura mural que representa a coroação de sua neta, Isabel I (falaremos mais dela em seguida).

Quando Catarina faleceu e Juan assumiu o trono ele construiu uma nova torre no palácio, hoje chamada Torre de Juan II.

Eu subi nela (o ingresso é separado) e acho que valeu muito a pena. As vistas lá do alto são lindas.

Se você quiser informações sobre como visitar o palácio, confira o site oficial.

O último momento de glória do alcázar foi o casamento do rei Felipe II, em 1571.

Foi ele quem colocou as torres em forma de cone, tão características do prédio atual, e quem construiu a nova ponte, substituindo uma antiga ponte levadiça sobre o fosso do castelo.

Visitar o alcázar é fácil: ele fica a vinte minutos de caminhada do aqueduto, no outro extremo da cidade.

O trajeto pode ser feito por quatro ruas diferentes: Ronda de Don Juan II, calle Daoiz, calle Velarde ou calle Pozo de la Nieve.

O caminho mais curto é pela calle Daoiz, que passa pelo centro medieval e pela catedral.

Quem vai pela Ronda de Don Juan caminha dois minutos a mais. O trajeto, por cima de uma das muralhas da cidade, passa por uma de suas áreas mais bem preservadas: a porta de San Andres (também chamada de Porta do Socorro).

O trajeto pelo outro lado, pela calle Pozo de la Nieve é o mais longo, aproximadamante 25 minutos a pé. Mas pode demorar ainda mais, porque eu vou te sugerir um detour 😉

Nessa rua começa uma trilha morro abaixo, que nos leva até a Pradera de San Marco, aquele lugar de que falei antes, onde se tem a vista mais bonita do castelo. É uma opção àquela outra trilha de que falamos antes, que começa na Porta de Santiago.

Se você for até lá, pode retornar ao alcázar também pela trilha que acompanhao o rio Eresma.

Há duas pontes por onde você pode cruzar o rio de volta, em direção ao centro.

A primeira fica ao lado da antiga Casa da Moeda, e te põe nas redodenzas do alcázar.

A Casa da Moeda foi criada no governo de Felipe II, em 1583, para a primeira produção mecanizada de moeda na Espanha. O prédio manteve essa função até 1869 e, hoje, abriga um museu.

A segunda opção é a Puente de la Alameda, essa já bem longe do alcázar e mais próxima do aqueduto.

O Desenvolvimento da Cidade Medieval

Já no reinado de Afonso X (1252-1284), Segóvia começou a ter importância política: as Cortes, instituição medieval surgida em 1188, reuniram-se lá no ano 1256.

A partir daí, praticamente todos os reis e rainhas de Castela passaram temporadas em Segóvia.

A construção de igrejas na cidade aumentou: ainda hoje há um total de 15 igrejas de estilo românico (séculos XII a XV) na cidade.

Seguindo a corte e o clero, vieram os nobres.

Ao longo do século XV, quando o reino de Castela foi governado pelos monarcas Juan II (1406-54), Henrique IV (1454-74) e Isabel I (1474-1504), foram construídos a maioria dos palácios intramuros que vemos hoje.

Nessa época, o centro da cidade era a igreja de San Martín, na praça de mesmo nome.

Ao seu redor ainda podemos ver, dessa mesma época, um palácio construído pelo próprio rei Henrique IV (hoje parcialmente transformado em museu), o palácio chamado Torreon de Lozoya (hoje também museu), a torre da mansão da família Arias Dávila e a Casa dos Picos, que ficava ao longo da já inexistente Porta de San Martín.

Segóvia na vida de Isabel, a primeira grande rainha da Europa medieval

Vale a pena fazer uma pausa para conhecer a história de Isabel, rainha coroada em Segóvia, que ampliou tanto a Espanha que acabou fazendo com que essa cidade perdesse importância.

Isabel é uma rainha controversa, que entrou na história também por ter usado a Inquisição como instrumento para expulsar da Espanha judeus e muçulmanos.

Mas foi uma mulher espetacular, que, em um tempo dominado por reis, decidiu não só ser rainha, mas, também, governar.

Isso ia absolutamente contra a tradição de seu tempo, em que mulheres que herdavam reinos cediam seus poderes aos maridos (que, a propósito, eram escolhidos por outras pessoas).

Isabel era irmã de Henrique IV, que governou de 1454 a 1474.

Henrique casou-se, mas, por não conseguir ter filhos, ficou com a fama de impotente.

De repente, depois de 20 anos de casamento, sua mulher apareceu grávida. As más línguas dizem que a filha, Joana, é de um aliado próximo de Henrique, chamado Beltrán de la Cueva. Por isso ela entrou na história como “Juana, a Beltraneja”.

Os opositores de Henrique fizeram disso um motivo para apoiar uma outra possível futura herdeira: Isabel, a irmã de Henrique.

Por motivos políticos, em 1468, Henrique aceitou reconhecer Isabel como herdeira da Coroa de Castela. Entre as condições estava a de que sua irmã deveria casar-se com quem ele decidisse. A expectativa era de que, segundo a tradição, fosse o marido – e não ela – a reinar.

Esse acordo foi assinado em um lugar conhecido como Toros de Guisando (curiosíssimo, espia aqui) e, por isso, o tratado tem esse nome.

Mas Isabel decidiu que se casaria com quem ela quisesse. E escolheu Fernando, seu primo em segundo grau e herdeiro da Coroa de Aragão. Henrique era contra.

Além disso, como eles eram primos, o papa precisava autorizar o casamento para que ele fosse considerado válido.

Sem autorização nem do rei nem do papa, Isabel e Fernando casaram-se em 1469.

Como consequência, Henrique anulou o tratado de Toros de Guisando, fazendo novamente de Joana a herdeira oficial.

Era essa a situação quando Henrique morreu, em 1474.

Na data, Isabel encontrava-se sozinha em Segóvia (Fernando viajava muito para cuidar de seus próprios negócios).

Sabendo que a oportunidade de ocupar o trono era fazer-se coroar imediatamente, no dia seguinte à morte de Henrique, com ajuda de seus aliados, Isabel foi proclamada rainha, na praça principal (Plaza Mayor) de Segóvia.

O evento foi um escândalo, já que ela fez-se proclamar rainha na ausência de seu marido Fernando. Absoluto choque com os costumes da época.

O papel de Fernando, ela deixava claro nas cartas que enviou às outras cidades após sua coroação: por ser marido dela, a rainha de Castela, ele deveria ser reconhecido como rei (claramente um papel secundário de rei consorte).

Além disso, na procissão de coroação, ela executou os rituais da época que indicavam que ela tinha o poder de justiça no reino (monopólio sobre uso da força). Muita audácia para uma princesa do século XV!

Fernando não ficou suuuper feliz com isso, mas cerca de um mês depois da coroação eles já tinham chegado a um acordo que servia bem aos dois: um novo documento estabelecia que o direito dela como herdeira e rainha seria respeitado, mas ambos teriam o direito de “exercer justiça” no reino de Castela, conjunta ou separadamente.

Eles também concordavam que o nome dele viria antes nos documentos oficiais, mas seria o selo dela (e seu brasão) que teria precedência.

O casal, assim, criava uma monarquia dual, em que os dois consortes tinham praticamente os mesmos poderes no reino de Castela.

O casal, que mais tarde receberia do papa o título de Reis Católicos por ter completado a expulsão dos muçulmanos da Europa, é famoso por sua cumplicidade e lealdade política um ao outro.

Processos complicadíssimos e fundamentais para o sucesso do Reino de Castela exigiam decisões de ambos que não podiam esperar até que o casal estivesse junto. Qualquer um dos dois decidia. E eles ficaram famosos por jamais desfazer o que o outro tinha decidido ou feito na ausência do outro.

Alguns exemplos desses processos complicados são a guerra de cinco anos para garantir o trono contra a rival Joana, a conquista de vários reinos muçulmanos da Andaluzia, a necessidade de obter bons casamentos para os filhos (que resultaria em um neto como líder do poderoso Império Habsburgo) e a exploração marítima que levou à descoberta da América.

Quando Isabel morreu, em 1504, oficialmente o país Espanha ainda não existia. Mas 95% de seu território já era governado pelo casal, como reis de Castela (herdado por Isabel) e de Aragão (herdado por Fernando).

Os últimos 5% de território, na época o independente reino de Navarra, seriam incorporados à Castela por Fernando, no ano 1512.

Os sucessos políticos de Isabel afastaram-na de Segóvia, cidade onde ela foi coroada.

No começo, porque ela acreditava que o monarca precisava estar presente em seus territórios e, por isso, mantinha-se em constante movimento com sua corte.

Depois porque, durante o longo processo de reconquista da Andaluzia, Isabel começou a passar cada vez mais tempo na Andaluzia: inicialmente em Córdoba e Sevilha e, mais tarde, em Granada.

Para saber mais sobre a vida e o reinado de Isabel, recomendo o maravilhoso livro Isabella of Castille: Europe’s First Great Queen.

Idade Moderna (séc XVI a XVIII): o Lento Declínio de Segóvia

Durante o reinado no neto de Isabel, Carlos I (1516-1556), ocorreu a Guerra das Comunidades, um conflito que alterou a aparência de Segóvia.

Durante o conflito, nos anos 1520 e 1521, o alcázar foi seriamente atingido.

Assim que a guerra acabou, a catedral, que até então ficava exatamente na frente do castelo, também estava parcialmente destruída.

Ao invés de reconstruí-la no mesmo local, o rei decidiu colocá-la no centro da cidade.

É por isso que a catedral atual encontra-se entre o antigo centro medieval (igreja de San Martín) e o alcázar, em um terreno antes ocupado pelo convento de Santa Clara.

Contruída entre 1525 e 1768, a catedral é uma mistura dos estilos gótico tardio e renascentista.

Depois das Guerras das Comunidades, a muralha de Segóvia foi perdendo seu caráter defensivo. Com o passar do tempo, foram sendo construídas casas apoiadas ou até em cima dela.

A cidade foi perdendo importância. O alcázar deixou de ser residência real e, no reinado de Felipe III (1598-1621), passou a ser utilizado como prisão.

A população de Segóvia, que havia chegado a vinte mil pessoas durante o século XVI, foi muito impactada por um surto de peste no ano 1599 e pelas guerras em que a Espanha viu-se envolvida no século seguinte.

No meio do século XVIII, sua população estava reduzida pela metade.

Fonte: trabalho de conclusão na Universidade de Valladolid

Idade Contemporânea (séc XIX em diante): Segóvia Turística

Um dos primeiros sinais de investimento na cidade é o estabelecimento do Colégio Real de Artilharia no alcázar de Segóvia, em 1762.

O colégio operou lá até 1862, quando um incêndio provocou muitos danos ao prédio. Após sua restauração, o alcázar passou a abrigar o Arquivo Geral Militar (função que desempenha até hoje).

Mas o que provocou o aumento demográfico da cidade mesmo foi a chegada do trem, em 1884. A primeira linha ligava a cidade à Medina del Campo, antigo centro produtor de têxteis da Espanha.

Em 1888, uma segunda linha, ligando Segóvia a Madri, acelerou esse processo.

Entre as mudanças, está o desabrochar turístico da cidade. Para receber os visitantes, surgem novos restaurantes e pousadas ao redor do aqueduto romano.

Um deles está em funcionamento até hoje: o Mesón de Candido.

Mesonero Mayor de Castilla

O restaurante existe desde 1884, mas seu nome atual é de 1931. Foi nesse ano que Cándido López Sans (1903-1992) assumiu o negócio, que continua na família até hoje.

Candido é um cidadão ilustre da cidade. Há até uma estátua dele na chegada a Segóvia:

O motivo é curioso: desde 1949 ele é conhecido como Mesonero Mayor de Castilla (que significa mais ou menos hoteleiro principal da região), título que seria referendado pelo rei da Espanha na década de 1980.

Mas que título real é esse?

Bem, aí é que está a graça do negócio. Esse foi um título inventado pela Confraria dos Doze Apóstolos, um grupo de jornalistas e intelectuais.

O restaurante Candido já era frequentado por personagens ilustres, principalmente políticos, desde sua abertura.

Um grupo de visitiantes regulares eram os membros dessa confraria. Eles reuniam-se mensalmente, cada mês em um restaurante.

Na visita anual ao Candido, os confrades não apenas encontravam um divino banquete de pratos tradicionais (como sopa castelhana, morcilha de arroz e cochinilho assado), mas também toda a pompa!

O próprio Candido, acompanhado de uma comitiva usando trajes castelhanos e tocando instrumentos típicos, recebia os confrades.

Ao final do jantar de julho de 1949, um dos confrades teria dito algo do tipo: “Eu sugiro que o Candido seja elevado ao título de Melhor Hoteleiro de Castela!”.

O grupo todo apoiou e aplaudiu. Pronto. Estava criado o título de Mesonero Mayor de Castilla, que seria referendado pelo rei Juan Carlos décadas mais tarde.

Aqui tem uma foto de Cândido com o rei e a rainha da Espanha.

Eu estava na dúvida se valia a pena comer no Meson Candido ou não, pois não sabia ainda dessa história toda. Quando eu dizia que estava indo a Segóvia, todos os amigos espanhois diziam: “tens que ir no Candido, é o mais tradicional”. Mas paravam por aí.

Decidi ir, mesmo sabendo que era um dos mais caros da cidade, apenas para conhecer. Comi uma sopa castelhana super saborosa.

Mas, mais do que isso, adorei o ambiente.

O prédio tem muitas salas, todas com decoração típica e muitos documentos mostrando a história do lugar e confirmando a presença dos visitantes ilustres ao longo de tantas décadas.

Foi passeando por essas salas que comecei a entender porque o Candido é tão famoso! Ele guardou fotos e dedicatórias dos visitantes ilustres desde a abertura, e elas estão expostas pelas paredes.

Também estão expostos muitos outros reconhecimentos e títulos recebidos ao longo dessas sete décadas de operação. Bem legal! Adorei e recomendo.

Para conhecer mais sobre a história do Candido, você encontra sua biografia aqui. E, para reservar uma mesa, aqui está o site do restaurante Mesón de Candido.

Patrimônio Histórico da Humanidade

O crescimento do turismo ao longo do século XX, acompanhado por um forte movimento de preservação e valorização do patrimônio histórico espanhol, revigorou Segóvia.

Como não podia deixar de ser, a cidade com seu aqueduto romano, muralhas e prédios medievais e sua imponente catedral foi reconhecida como patrimônio histórico nacional (1941) e, logo, da humanidade (1985).

É uma preciosidade mesmo. Imperdível!

Dicas Práticas

Segóvia fica a 90 quilômetros de Madri e é uma excelente opção para quem quer fazer um bate-e-volta a partir da capital espanhola.

Ir de trem é mais rápido. Há três tipos de trem diferentes fazendo a conexão: AVE, Avant e Alvia (todas operadas pela RENFE). O destaque é a linha rápida que sai da estação Madri-Chamartín e faz o trajeto em apenas 27 minutos.

Mas a estação ferroviária de Segóvia fica longe do centro. Chegando lá, você vai depender de táxi ou ônibus de linha para chegar ao centro.

Eu peguei um táxi da estação até o hotel e saiu 18 euros (dezembro 2023). Quem opta por ônibus (linhas 11 ou 12), paga menos, mas vai ter que esperar mais um pouco.

A outra opção é ir de Madri a Segóvia de ônibus. Tem uma opção que leva apenas 1h20min, saindo do Intercambiador Moncloa (praticamente no centro de Madri).

A vantagem é que o ônibus te deixa a apenas dez minutos de caminhada do aqueduto.

É super tranquilo conhecer o aqueduto, a catedral, o centro antigo e o alcázar em um dia. Mas eu te sugiro dormir uma noite lá, por três motivos.

O primeiro é ver o aqueduto à noite. É bonito!

O segundo é ter mais tempo para experimentar a culinária castelhana em uma das cidades mais tradicionais da região. Você não precisa ir no Mesón Cándido: vários outros restaurantes oferecem o cochinilho e os outros pratos típicos de Castela.

Dá pra experimentar um cochinilho diferente em cada refeição.

O terceiro motivo é aproveitar para conhecer o palácio real da granja de Santo Antônio, a cerca de 12 quilômetros de Segóvia.

Esse palácio foi construído por Felipe V, que governou de 1700 a 1724. Ele é o mesmo rei que mandou construir o palácio real da cidade de Madri.

Quando ele comprou a granja, seu plano era construir lá uma casa de férias. Logo que ela ficou pronta, Felipe abdicou e foi morar lá.

Mas seu filho, o novo rei, morreu alguns meses depois, forçando Felipe a voltar ao trono.

A consequência é que o palácio da granja precisou ser ampliado, para que o “Rei Pai” pudesse governar dali.

O palácio real da granja de San Antonio é hoje aberto para visitas, que incluem passeio pelos aposentos reais e jardins.

Se você quer ver um pouco de Segóvia, te sugiro esse vídeo do canal Espanha Total (em espanhol, 14 minutos).

E vamos finalizar com um presentinho para os loucos por mapa como eu: um mapa de Segóvia em 1563, feito por Anton van den Wyngaerde, por encomenda do rei Felipe II.

Fonte: CastillosMedievales.org