A Andaluzia, uma das 17 comunidades autônomas da Espanha, é um dos lugares mais visitados do mundo.
Foi nessa região de clima quente no sul da Espanha, ponto mais próximo entre a Europa e a África, que surgiu o flamenco, estilo de música e dança que hoje é parte da identidade espanhola.
Mas o principal motivo pra visitar a Andaluzia é conhecer tesouros da arquitetura medieval árabe. Os grandes destaques são a mesquita de Córdoba e a Alhambra, uma cidade murada em Granada.
Mas como aquelas jóias árabes foram parar no meio da Espanha?
É que já houve um tempo em que os cristãos perderam praticamente toda a Península Ibérica para os muçulmanos.
Os muçulmanos chegaram no ano 711 e permaneceram até 1492, quando o último reduto árabe, Granada, foi conquistada e integrada ao novo país que nascia, a Espanha.
Durante esse oito séculos, o reino árabe na Península Ibérica, chamado Al-Andalus, chegou a ser a área mais próspera e desenvolvida da Europa.
É sobre esse tempo que a gente vai falar nesse post.
Mouros, árabes ou muçulmanos?
É comum ouvir que os mouros ocuparam a Espanha. Mas a gente também escuta que foram os árabes ou os muçulmanos.
Afinal, quem ocupou a Península Ibérica? Vamos começar esclarecendo alguns conceitos.
Quem são os Mouros?
O termo mouros é derivado do latim maurus, que era como os romanos chamavam os habitantes do norte da África na época em que essa região era uma província romana chamada Mauritânia.
Quando habitantes daquela região passaram a ocupar a Península Ibérica no século VII, os visigodos, habitantes da Espanha até então, usaram esse termo para referir-se aos invasores.
Com o passar do tempo, a palavra mouros passou a ser usado para qualquer pessoa muçulmana ou de pele mais escura vivendo na Europa. Havia até uma distinção entre “mouros negros” e “mouros brancos”.
O termo disseminou-se pelo continente, chegando também na literatura.
Provavelmente o mouro mais conhecido nos dias de hoje é Otelo, personagem-título de uma das obras mais famosas de Shakeaspeare (“Otelo: o Mouro de Veneza“).
E os Árabes?
Originalmente eram chamados de árabes os povos nômades que viviam na Península Arábica (também chamada de Arábia). A principal coisa que eles tinham em comum era o idioma.
No século VII, os povos dessa região passaram a adotar o islamismo como religião. A religião disseminou-se extremamente rápido e, logo, tornou-se um fator de união dos vários povos da Arábia.
Religião e política andavam de mãos dadas e, quando o fundador do islamismo, Maomé, morreu (ano 632), seus sucessores passaram a adotar o título de califa (que significa sucessor).
Por isso o império árabe, que se formava e rapidamente conquistava territórios na África e no Oriente Médio, passou a ser chamado de Califado.
Os primeiros califas pertenciam à dinastia Umayyad e governaram a partir de Damasco (hoje na Síria).
Na medida em que o Califado ia conquistando mais territórios, seu idioma (e religião) esparramava-se mundo afora.
Hoje o termo árabe refere-se a todas os povos que tem o árabe como idioma nativo, o que ocorre em uma área enorme, que se estende da Mauritânia (hoje um país na costa oeste da África) até o Irã, passando por todo o norte da África (incluindo Egito e Sudão), Península Arábica, Síria e Iraque.
Mais de 90% dos árabes ainda seguem a religião fundada por Maomé.
Muçulmanos
Todo o seguidor dessa religião, o islamismo, é chamado de muçulmano. E, embora a maioria dos árabes sejam muçulmanos, atualmente, os árabes representam apenas 20% do total de muçulmanos do planeta.
Como falei antes, o Califado expandiu-se rapidamente. Mas ele também enfraqueceu alguns séculos depois, deixando de existir como instituição política em 1258.
Mas a religião muçulmana, que era fácil de ser seguida e bastante tolerante em relação às outras religiões, sobreviveu e expandiu-se.
Esse vídeo da Business Insider (2:35) mostra bem como aconteceu a expansão do islamismo (e, também, das outras 4 maiores religiões dos dias de hoje).
Hoje cerca de 25% da população mundial é muçulmana, sendo a segunda mais representativa no mundo (atrás apenas do cristianismo, com 30%).
O islamismo continua sendo a religião majoritária no norte da África e Oriente Médio, onde surgiu, e tornou-se majoritária também na Indonésia. Cerca de 90% da população dessas áreas é muçulmana.
Há muitos muçulmanos também na Malásia (cerca de 60% da população) e na Índia (pouco mais de 10% da população, mas isso representa mais de 100 milhões de pessoas).
O islamismo também tem presença significativa na Europa, sendo a religião de 12% da população da Rússia e mais de 5% das populações de França, Alemanha e Holanda.
Mas voltando ao assunto: quem, afinal, ocupou a Península Ibérica?
Quem disse que ia ser simples assim? 🙂
Quem entrou primeiro na Espanha foram os berberes. Oi?!!!
A palavra vem de bárbaros, que foi como os árabes-muçulmanos que conquistaram a Argélia e o Marrocos chamaram os povos que já viviam naquela região.
E foi um pequeno grupo de berberes, que já haviam tornado-se muçulmanos e já falavam o idioma árabe, que cruzou o estreito de Gibraltar no ano 711.
Foi uma vitória arrasadora, e os berberes sairam ocupando tudo, península adentro.
Foi uma conquista tão fácil e havia tantas riquezas naquela terra que, no ano seguinte, um segundo exército, dessa vez formado por árabes, saiu do norte da África para expandir as conquistas muçulmanas na Europa.
O que facilitou a conquista foi o fato de que, para a população em geral, o governo muçulmano era melhor do que o governo cristão.
Para começar, havia grande tolerância religiosa. Os judeus (grande parte da população) deixaram de ser perseguidos e passaram a ter status jurídico e social igual ao dos cristãos.
Além disso, os governantes muçulmanos cobravam impostos menores do que os que eram cobrados pelos nobres cristãos.
E, pra completar, servos que se convertiam ao islamismo ganhavam status de homens livres.
O islamismo era bom para a grande maioria!
E foi assim que, em pouco mais de dez anos, praticamente toda a Península Ibérica estava controlada pelos muçulmanos, que chamavam aquela terra de Al-Andalus (provavemente em uma referência aos vândalos, povo que havia habitado a região nos séculos III e IV).
Emirado Dependente (711-756)
A primeira fase da ocupação foi de rápida expansão. Os muçulmanos, não apenas conquistaram a Península Ibérica, como, também, boa parte da França, chegando a Tours (200 km ao sul de Paris).
Eles foram contidos pelos Francos, cristãos que os mantiveram, pelos séculos seguintes, abaixo dos Pirineus (cadeia de montanhas entre França e Espanha).
Essa fase é chamada de Emirado Dependente porque o Al-Andalus era governado por um representante do califa Umayyad, baseado em Damasco.
A fundação de Bagdá (762)
Mas estava acontecendo uma mudança importante no mundo árabe: após uma guerra civil, a dinastia Umayyad foi substituída pela dinastia Abbasid, que passou a governar o mundo árabe de uma nova cidade, Bagdá.
A cidade (hoje capital do Iraque) logo se tornaria um centro de ciência e aprendizado.
A dinastia Abbasid promoveu o desenvolvimento científico, com destaque para a medicina, geometria, astronomia e matemática.
Os árabes tinham acesso aos clássicos gregos, já que seu império havia conquistado antigos centros de aprendizagem, como Alexandria.
Porém a maioria da população não entendia o idioma. Para superar esse problema, a dinastia Abbasid fundou um centro de traduções, chamado Casa da Sabedoria (House of Wisdom).
Em cerca de 150 anos todos os principais textos científicos e filosóficos da Grécia Antiga que eles haviam encontrado já haviam sido traduzidos para o árabe.
Esses textos não estavam disponíveis na Europa – e, ainda que estivessem, seriam inacessíveis, pois o conhecimento do idioma grego tinha praticamente desaparecido no continente após a queda do Império Romano.
Além de todo o conhecimento grego, os árabes também beneficiram-se de uma invenção que veio da Índia: o primeiro sistema numérico contendo o número zero.
Isso possibilitou um desenvolvimento fantástico da matemática e da astronomia.
Emirado Independente de Córdoba (756 – 929)
Mas voltemos à Península Ibérica!
Um príncipe da dinastia Umayyad, aquela do tempo em que o califado era controlado de Damasco, conseguiu escapar da revolução.
Ele fugiu para a Península Ibérica e, em 756, conquistou Córdoba. Seu nome era Abderramán.
Ele proclamou-se emir, um título do Califado que significa que a pessoa tem poder militar e político, mas, em questões religiosas, continua submetida ao poder do Califa.
Isso possibilitou o desenvolvimento da Península Ibérica ligado ao desenvolvimento do mundo árabe.
E, como estava na Europa, a corte de Abderramán passou a atrair europeus interessados no desenvolvimento do conhecimento científico.
Califado de Córdoba (929 – 1031)
Foi uma nova mudança no mundo árabe que provocou mais uma mudança na Península Ibérica.
No século IX, surgiu no norte da África um novo grupo muçulmano, liderado pela dinastia Fāṭimid, que queria ocupar o lugar da dinastia Abbasid no controle do califado.
Os Fāṭimid proclamaram seu próprio califado, com sede em Túnis (Tunísia), em 910, criando um precendente para a Península Ibérica.
Abderramán III, no ano 929, aproveitou a oportunidade e proclamou-se Califa de Córdoba.
Em pouco tempo ele fez da cidade, que tinha o dobro da população de Paris ou Roma na mesma época, a corte mais fascinante da Europa.
O Califado de Córdoba foi o principal centro de transmissão de conhecimento do mundo árabe-muçulmano para o mundo europeu-cristão na Idade Média.
Foi também durante seu governo que Al-Andalus conquistou as cidades de Ceuta e Melila no norte da África. Elas pertencem até hoje à Espanha.
Na época foi uma medida de defesa, para evitar que os Fāṭimids chegassem a Al-Andalus. Mas acabou não sendo necessário, pois eles desviaram o rumo em direção ao Egito.
O auge de Al-Andalus
Foi também Abderramán III quem fundou a Mesquita de Córdoba, tão impressionante que foi preservada pelos cristãos e é hoje Patrimônio da Humanidade.
Seu sucessor, al-Hakam II, criou uma biblioteca espetacular, fundou escolas públicas e trouxe professores de Bagdá para ensinar na universidade da cidade.
O Califado chegou no máximo de sua expansão territorial no reinado de Hixam II, que era apenas uma criança.
O poder foi, de fato, exercido por Almanzor, um guerreiro que estendeu o poder de Córdoba por toda a Península, de Santiago de Compostela a Barcelona.
Mas isso foi também o começo do fim do Califado de Córdoba. Depois da morte de Almanzor, ele foi substituído por seus descendentes, que não conseguiram manter o controle sobre a região. Isso levou à deposição do califa Hixam II no ano 1008.
Depois de 20 anos de guerra civil, as famílias mais importantes de Córdoba decidiram abolir o califado e declarar uma república. As províncias de Al-Andalus tornaram-se principados independentes, chamados de Taifas.
Os reinos de Taifas (1008 – 1091)
O Al-Andalus ficou dividido em muitos reinos fracos, divididos basicamente em três grupos.
Havia os reinos governandos por árabes, como Sevilha, Zaragoza e Toledo. Outros governados por berberes, como Granada e Málaga. E, ainda, reinos que ficaram sob controle de ex-escravos, como Denia.
Isso facilitou a expansão cristã, da qual já falei no post sobre a história da Espanha. Em 1085, os muçulmanos perderiam definitivamente a cidade de Toledo.
Isso teve duas consequências importantes. Para os cristãos, isso significava pleno acesso aos textos científicos disponíveis na cidade.
Para traduzir os textos científicos e filosóficos do árabe para o latim, eles fundaram em Toledo a Escola de Tradutores, que passou a ser o principal centro cultural da Europa, atraindo cristãos de todo o continente.
Para os muçulmanos, a ocupação de Toledo significava que eles precisavam de ajuda para manter o controle sobre o resto da península.
E aí eles tiveram que pedir socorro para outros muçulmanos, os berberes Almoravids, originárias do Saara.
Os Almoravids haviam controlado o norte da África e estabelecido sua capital em Marraquesh (Marrocos) uns anos antes, em 1062.
Novas ondas berberes na Península Ibérica
Os Almoravids ajudaram os reinos de taifas a conter os cristãos. Mas não foram embora depois. Logo eles assumiriam o controle de todas as Taifas, começando por Sevilha.
Eles recriaram o Califado e fizeram de Sevilha sua capital.
Mas os Almoravids não mantiveram-se no poder por muito tempo. Marraquesh, cerca de cem anos depois, foi ocupada por outro grupo de tribos berberes, os Almohads, originários do norte do Marrocos.
Depois de controlar a situação no norte da África, os Almohads foram ocupar as terras dos Almoravids do outro lado do Estreito de Gibraltar.
O avanço cristão
Até que, em 1212, todos os reinos cristãos da Península Ibérica, com apoio de forças francesas, do papa e dos cavaleiros templários, enfrentaram o exército Almohad em um lugar chamado Navas de Tolosa – e venceram.
A partir daí, especialmente em função de seus próprios conflitos internos, o Califado Almohad começou a desintegrar-se.
No vácuo de poder, restaram dois últimos reinos muçulmanos, um com sede em Múrcia, outro com sede em Granada.
Eles adotaram políticas bem diferentes em relação ao mundo cristão. Múrcia optou pelo enfrentamento e, logo, perdeu Córdoba, Sevilha, Valência e as Ilhas Baleares.
Granada optou pela diplomacia e, reconhecendo vassalagem ao cristão Reino de Castela, resistiu por mais 250 anos.
Granada, o último reduto muçulmano na Espanha
O Reino de Granada, também chamado de Emirado de Granada, foi governado a partir de 1232 pela dinastia Naṣrid, remanescente dos antigos Almoravids.
Sua sede era em Alhambra, uma cidade murada no alto de uma colina na cidade de Granada.

A Alhambra é hoje o único exemplar de cidade palaciana árabe daquele período.

Não só por isso, como também por sua arquitetura espetacular e importância cultural, ela é considerada Patrimônio da Humanidade.
Salas e salas como essa… … com essa riqueza de detalhes
A partir da metade do século XIII, o Reino de Granada passou a ser o único lugar seguro para os muçulmanos que precisavam fugir dos lugares conquistados pelos cristãos.
Na capital, as famílias da elite social e cultural muçulmana instalaram-se no Albaicín, hoje um bairro na encosta do morro imediatamente em frente ao morro onde fica a Alhambra.

Outro local onde elas instalaram-se foi em Málaga, no litoral, segunda cidade mais importante do reino.
Embora temessem os cristãos, que agora os cercavam completamente, os Naṣrids optaram por não pedir ajuda de outros povos muçulmanos. Afinal, todos que vinham para ajudar acabavam ficando e tomando o poder.
A partir da metade do século XIV, o Reino de Granada entrou no seu período de maior esplendor.
A fundação da Universidade Naṣrid (al-Madrasa al-Nasriyya) colocou Granada no circuito de alto desenvolvimento do conhecimento árabe, ao lado de cidades como Marraquesh, Fez e Túnis, no norte da África.
Granada era também um entreposto comercial entre o leste e o oeste. Sua economia prosperava.
Ao mesmo tempo, a cristandade foi uma ameaça menor nessa fase: a Peste Negra havia matado mais de um terço da população da Europa e os reinos cristãos da península disputavam o poder entre si.
Algumas fontes dizem que, nessa fase, Granada, chegou a ser a cidade mais populosa e uma das mais prósperas da Europa.
A queda de Granada
As relações com o mundo cristão ficaram mais complicadas no século XV, quando o Reino de Castela ocupou Antequera (1410) e Gibraltar (1462).
Mas foi o casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão que levou, de fato, à expulsão dos muçulmanos da Espanha.
Juntos, esses dois reinos controlavam praticamente todo o território que forma a Espanha dos dias de hoje.
O capítulo final dessa história é a Guerra de Granada (1482 – 1492). O último rei muçulmano, ao entregar a Alhambra para os cristãos, conseguiu salvar a cidade da destruição.
Os reis católicos, em um primeiro momento, permitiram que ele continuasse na região, na Alpujarra (nas montanhas, no lado sul da Sierra Nevada).
A arquitetura em muitas cidades dessa região ainda mantém características da arquitetura árabe.

Mas pouco tempo depois ele partiria para o norte da África e, embora tenham rebelado-se por um período, os muçulmanos acabaram tendo que se converter ao cristianismo ou abandonar a Europa.
A Penísula Ibérica, depois de oito séculos, voltava ao domínio cristão.
Para conhecer mais sobre a herança muçulmana na Espanha, leia meu post Granada, Patrimônico Histórico da Humanidade: Alhambra, Generalife e Albaicín.
Flamenco: de Al-Andalus para o mundo
A música e dança que hoje é uma marca nacional da Espanha, surgiu na Andaluzia durante o tempo dos muçulmanos – mas influenciada, principalmente, pelos ciganos.
É que durante aqueles séculos de tolerância religiosa também migraram para a Espanha muçulmana os Romas, um povo nômade originário da Índia, que, chegando ao sul da Espanha, passou a ser chamado de gitano (cigano, em português).
Os Romas trouxeram seus instrumentos musicais: tamborins, sinos e as castanholas de madeira.
A mistura com a poesia e música berbere, árabe e judaica deu origem a uma forma de arte única que, mais adiante, passou a ser chamada de flamenco.
Durante o século XIX, um período de formação das identidades nacionais na Europa, o flamenco foi resgatado como elemento de identidade do povo espanhol.
Embora houvesse resistência por parte de vários setores da sociedade, que viam o flamenco como uma ameaça à moral e aos bons costumes em função de seu caráter sensual, o flamenco conquistou o mundo – começando por Paris.
O livro Carmen (1835), do francês Prosper Mérimée, contava a história de uma heroína cigana.
A partir daí, espetáculos de flamenco começaram a acontecer por toda a Europa. Algumas décadas depois o livro seria transformado em ópera por Bizet.
O caráter exótico do flamenco encantava o resto do mundo. E o governo espanhol, na segunda metade do século XX, aproveitou-se disso para promover o turismo.
Funcionou. Hoje em dia, a magia do flamenco é o segundo elemento que, junto com a arquitetura árabe, atrai milhares de turistas para a Andaluzia todos os anos.
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