Bergen, a antiga capital da Noruega, costuma aparecer em qualquer roteiro de turismo pelo país. O principal motivo é Bryggen, a antiga zona portuária, que existe há cerca de mil anos e teve um papel fundamental na história comercial da Europa entre os séculos XIII e XV.

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Naquela época, a cidade era um importante ponto de troca da Liga Hanseática. Lá, os comerciantes alemães obtinham bacalhau, pescado no norte da Noruega. O produto era muito valorizado nos outros países europeus.

Bergen é também um dos pontos de partida mais populares para passeios pelos fiordes noruegueses e para rotas de trem para as montanhas. No post Para a Entender a Noruega eu dou dicas sobre como conhecer as belíssimas paisagens do país.

Os passeios clássicos em Bergen são:

  1. visitar Bryggen, Patrimônio Histórico da Humanidade
  2. comer bacalhau e baleia no Mercado de Peixes
  3. subir no monte Fløyen, para ter vistas panorâmicas da cidade
  4. caminhar pelo bairro antigo, com tradicionais casas de madeira

Para quem tem mais tempo e gosta de história, a cidade tem  ainda seus segredinhos. Histórias de sucesso, como a do músico Edvard Grieg, e outras muito tristes, como a das “crianças alemãs”, nascidas durante a II Guerra Mundial.

É um pouco de tudo isso que eu vou contar nesse post.

Século XII: A Fortaleza de Bergen (Bergenhus)

Há vestígios de que havia comércio na regiao já no ano 1000, mas, oficialmente, a cidade foi fundada em 1070. Em torno de 1100 foi construído um castelo. Isso marca o início da importância da cidade, que seria a capital da Noruega até 1299.

Dos prédios medievais ainda estão em pé o Haakon’s Hall e a Torre Rosenkratz.

O Haakon’s Hall, esse prédio da foto abaixo, foi construído entre 1247 e 1261, como residência real e sala de banquetes.

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A primeira festa, em 1261, foi o casamento do príncipe Magnus Håkonsson Lagabøte, filho do rei Håkon Håkonsson, com a princesa dinamarquesa Ingeborg.

Até hoje, o prédio é utilizado para eventos. Também é possível fazer uma visita guiada.

Já a Torre Rosenkratz foi construída em 1270 e alargada no século XVI. Há opiniões contraditórias sobre valer ou não a pena visitá-la. Eu não subi. Antes de decidir se vale a pena pagar as 80 coroas da visita, vale a pena ler os comentários no Trip Advisor. As opiniões variam bastante.

Séculos XIII a XVII: A vida no tempo da Liga Hanseática

O ponto alto da minha passagem por Bergen foi a visita guiada ao Museu da Liga Hanseática. Ele fica numa das 56 casas de madeira que, junto com 6 armazéns de pedra, formam o conjunto arquitêtonico considerado Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO.

Esse mapa, que está lá, mostra o motivo dos comerciantes alemães terem se instalado em Bergen: era um ponto de acesso importante ao bacalhau pescado em Lofoten, no norte da Noruega.

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O bacalhau era muito apreciado na Europa, especialmente por poder ser armazenado por até 3 anos. O bacalhau de Lofoten, ao contrário do que estamos acostumados a pensar, não era salgado. Ela era apenas desidratado naturamente. E isso era o suficiente para armazená-lo.

O processo de reidratação possibilita o consumo. E esse é ainda um prato típico da região. Segundo a nossa guia, a opinião dos noruegueses sobre o prato é dividida: metade deles ama, enquanto a outra metade odeia o prato.

Em troca do bacalhau, os pescadores levavam os grãos e cereais que vinham do centro da Europa e dos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia).

No museu, além de contar sobre os produtos, os guias explicam como era a vida ali.

Era um mundo masculino: não era permitida a entrada de mulheres em Bryggen. Era também frio e escuro: em função do alto risco de incêndios, não havia iluminação, aquecimento ou fogões nas casas. E o trabalho era duro, especialmente para os chamados “aprendizes”.

Em geral, em cada casa viviam 8 pessoas: o chefe, seu auxiliar e 6 aprendizes. O chefe era, em geral, o representante do dono (o dono costumava ser um alemão que já havia ganho ali dinheiro o suficiente para voltar para casa e desfrutar a vida).

O chefe cuidava do dinheiro. Quem tocava mesmo o negócio era o auxiliar. Já o trabalho braçal era feito pelos aprendizes, meninos de famílias pobres alemãs. Eles submetiam-se ao rígido regime das casas em troca de educação, comida e moradia.

Chegavam adolescentes e ficavam lá por 6 ou 7 anos. A educação e experiência acumuladas nesses anos de trabalho possibilitavam que eles tivessem vidas boas depois disso, muito melhores do que as que teriam se não tivessem ido para lá.

A Liga Hanseática existiu formalmente até 1669 (ano de sua última reunião), mas o comércio em Bryggen continuou. A antiga base comercial da Liga transformou-se no Escritório Norueguês, que existiu ainda por cerca de 200 anos.

Hoje Bryggen é uma área turística, onde, além do museu, encontram-se hotéis, restaurantes, bares e lojas.

Século XIX: Os grandes artistas de Bergen

O compositor Edvard Grieg, o violinista Ole Bull e o dramaturgo Henrik Ibsen são motivos de orgulho da cidade.

Ole Bull, que nasceu na cidade em 1810, começou a tocar violino com 5 anos de idade. Durante sua carreira, compôs e tocou com outros músicos notáveis, como Franz Liszt, Robert Schumann e Felix Mendelssohn.

Ele é homenageado com essa estátua no centro da cidade.

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Bull teve papel fundamental no estabelecimento do Teatro Norueguês de Bergen, em 1849.

Em 1851, ele convidou o jovem Henrik Ibsen, com então apenas 23 anos, para dirigir o Teatro. Ibsen, que um ano antes havia escrito sua primeira peça de teatro, Catiline, assumiu a posição, ficando lá até 1857.

Mas o dramaturgo Ibsen nunca conseguiu sucesso na Noruega, nem em Bergen, nem em Oslo (entao chamada Khristiania), onde viveu de 1857 a 1864. E, então, foi embora.

Ficou longe do país por 27 anos, período no qual tornou-se famoso. Seu primeiro grande sucesso foi A Casa de Bonecas, de 1879.

Muitas peças de teatro depois, e já famoso por toda a Europa, Ibsen voltou para a Noruega, em 1891. E, hoje, devidamente valorizado, tem uma estátua na frente do Teatro Norueguês, onde começou sua carreira.

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Ole Bull também influenciou a vida do músico Edvard Grieg. Foi por indicação de Bull que Grieg, nascido em Bergen, foi aceito no Conservatório de Leipzig, a escola de música mais antiga da Alemanha.

Grieg teria dito, anos mais tarde, que a visita de Bull à casa da família em Bergen, em 1858, quando ele tocou piano para o famoso violinista, foi o evento mais importante de sua vida.

Os caminhos de Grieg também encontraram os de Ibsen: Grieg compôs a música para a peça Peer Gynt do famoso dramaturgo. Foi um sucesso absoluto.

E, alguns anos depois, Grieg lancou Peer Gynt Suite I e II, reunindo as melodias mais populares da peça. Essas duas obras estão entre as músicas instrumentais mais tocadas nos dias de hoje. Acha que não conhece? Conhece sim!! Clica nesse vídeo do YouTube para conferir.

Foi em 1885 que Grieg, já famoso, estabeleceu-se em uma casa nos arredores de Bergen (Troldhaugen), onde viveu até seus últimos dias. Hoje a casa é um museu, onde pode-se também assistir a concertos. Todas as dicas sobre como visitar a casa de Grieg estão aqui.

E, claro, ele também tem sua estátua no centro da cidade.

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Século XX: O Programa Lebensborn e a triste história das “crianças alemãs”

Tudo comecou quando Heinrich Himmler, o homem forte de Hitler, criou a Sociedade Lebensborn (fonte de vida), em 1935.

O objetivo do projeto era aumentar o número de nascimentos na Alemanha, já que, durante o período entre-guerras, muitas mulheres abortavam – pela pobreza ou, no caso das solteiras, pela falta de homens com quem casar.

O programa consistia em promover um maior número de filhos entre casais e, também, o nascimento dos filhos das mães solteiras. Ele dava às mães abrigo, cuidados médicos, dinheiro e, se fosse de interesse delas, um lar adotivo para as crianças.

Na medida em que a Alemanha foi ocupando outros países durante a II Guerra Mundial, o programa foi sendo estendido. Em 1941 ele chegou à Noruega.

Os soldados alemães eram incentivados a ter filhos com mulheres norueguesas, que, assim como outras escandinavas, loiras e de olhos azuis, eram consideradas “clássicas arianas”.

Era garantido aos homens que, caso não quisessem casar com essas mulheres ou ja fossem casados, os bebês e suas mães seriam cuidados pelo Programa.

Para as jovens norueguesas, o auxílio do Lebensborn era quase um presente, no caso de terem engravidado de um soldado invasor. O Programa lhes dava a possibilidade de ter seus bebês em um abrigo longe de sua cidade de origem (foram estabelecidos 10 centros na Noruega, um deles em Bergen) e a garantia de cuidados para a mãe e o bebê.

Além, é claro, da possibilidade de adoção – em alguns casos, por famílias alemãs.

Dependendo da fonte, fala-se entre 8.000 e 12.000 crianças registradas nesses centros, apenas na Noruega. E tudo teria acabado relativamente bem para elas se a Alemanha tivesse vencido a guerra…

Só que, ainda do exílio na Inglaterra, o governo norueguês comunicou que essas mulheres pagariam pelo que fizeram pelo resto da vida. E foi isso o que aconteceu.

Os noruegueses aplicaram todo o seu ódio contra essas mulheres, que ficaram conhecidas como “prostitutas alemãs”. Cortaram seus cabelos. Fizeram com que elas desfilassem pelas ruas para que a população cuspisse na sua cara. Milhares foram presas ou internadas. O governo norueguês tentou deportá-las.

Seus filhos, que ficaram conhecidos como as “crianças alemãs”, foram acusados de ter genes ruins. Muitos foram internados em instituições psiquiátricas, onde sofreram todos os tipos de abuso.

Muitos deles jamais souberam quem eram seus pais. Esse artigo fala mais sobre o Programa e conta a história de cinco dessas crianças.

Uma das mais conhecidas “crianças alemãs” é a cantora Frida, do grupo ABBA.

Nascida em 1945, filha de mãe norueguesa e de um soldado alemão, ela, sua mãe e sua avó foram hostilizadas em sua vila, no norte do país. Tiveram que mudar-se para a Suécia, onde a mãe de Frida morreu antes de ela ter 2 anos.

Esse artigo conta a história dela e fala sobre seu encontro com o pai quando já era adulta.

Em Bergen, essa estátua é uma lembrança da triste história dessas crianças e suas mães.

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Ninguém é exatamente o que você vê

Essa é uma outra estátua interessante da cidade.

“Ninguém é exatamente o que você vê” é o que está escrito perto dela, uma estátua sobre a qual não li em nenhum guia, mas que, depois, descobri ser a mais fotografada da cidade.

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Sim, um mendigo, jogado na porta de um banco, no país que tem a terceira maior renda per capita do planeta (FMI, 2016) e que é considerado pela ONU o país mais feliz do mundo.

Segundo o artista, Arne Maeland, que a colocou lá em 1999, seria um aviso: de que, na virada do milênio, nem todo mundo estava tão bem quanto parecia ser.

Das curiosidades que a gente encontra quando caminha à toa pelas cidades que visita. 🙂

Mercado de Peixes: onde o velho e o novo se encontram

Tem o mercado antigo, aberto, que se parece com qualquer outra feirinha de qualquer outra cidade.

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Mas tem também o novo, estiloso, construído a partir do projeto vencedor de uma competição lançada pela prefeitura em 2009.

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Chamado de “História Continuada”, o projeto reinterpreta os prédios históricos. E apresenta uma estrutura com painéis de madeira nas cores típicas da cidade.

Pra quem curte arquitetura, essa página fala sobre os detalhes do projeto. E o meu post no Instagram coloca as imagens lado a lado pra facilitar a comparação.

Nos dois mercados, tem um monte de gostosuras: bacalhau (é claro!), baleia e caviar, entre outras delícias da região.

Almoçamos num restaurante no mercado novo, com vista para Bryggen. Começamos com uma entrada de caviar e continuamos com carne de baleia.

Baleia (2)Crédito: Simone Donida

Apesar de parecer carne de gado, eu achei a textura parecida com a de fígado. Gostei, mas não comeria de novo.

Pra casa eu trouxe salame… de baleia e de rena!! Tinha de alce também. Coisas que a gente só vê nos países nórdicos.

salamesCrédito: Family Cook

Ainda falando sobre comida, recomendo dois dos restaurantes em que fui na cidade.

O primeiro é o Bryggen Tracteursted, onde comemos filé de rena. Fica dentro da área histórica, em um dos prédios antigos. É agradável, aconchegante, e a comida estava uma delícia.

RenaCrédito: Simone Donida

Como tudo na Noruega, é caro, mas para comer carne de rena uma vez na vida vale, né? O prato custou 40 euros.

O segundo é o Egon Kjøttbasaren. Não comi nada diferente lá, mas o ambiente é tão interessante! É uma típica taberna, escura, com teto baixo. Voltaria.

Monte Fløyen e a cidade

Uma visita a Bergen precisa incluir uma vista panorâmica do alto do monte Fløyen. De lá dá pra ver o centro da cidade, a zona portuária, os fiordes e, lá longe, o mar.

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O jeito mais fácil de subir é de funicular. A entrada fica bem pertinho do Mercado de Peixes. Para ir e voltar de funicular, o preço é 90 coroas (cerca de 9 euros).

Lá em cima, além de mirantes, tem restaurantes e lojinhas. Eu tive azar e peguei um dia nublado – contam que o pôr do sol lá de cima é espetacular.

Pra voltar, recomendo a caminhada. É uma descida de 40 minutos com uma bonita vista e com vários vários bancos pra descansar pelo caminho.

O bairro antigo: Nordnes e Klosteret

Pra ver um pouquinho das casas tradicionais norueguesas, a dica é circular por essa área.

 

Em meia hora de caminhada dá pra tirar fotos lindas e curtir esse cantinho sossegado do mundo.

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Chegadas e Partidas

O acesso a Bergen de avião é muito fácil. Várias capitais e cidades importantes da Europa tem vôo direto para lá.

O aeroporto é simpático, moderno e dá as boas vindas a quem chega assim:

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Do aeroporto à cidade o acesso é facílimo: basta pegar o Light Rail (metrô de superfície), que leva 40 minutos até a cidade. Custa 93 coroas. As estações inicial e final são o aeroporto e o centro da cidade (Byparken), não tem erro.

Para quem já está em Oslo, também dá pra ir de avião, tem vários vôos diários. Mas a opção mais clássica – e super bem recomendada – é o passeio Norway in a Nutshell, que combina trem, ônibus e barco.

Eu fiz todo o trecho de ônibus, passando pelo fiorde Hardaanger. Tudo sobre esse trajeto eu conto num outro post.

Pra terminar

Bergen também tem um museu a céu aberto, chamado Gamle Bergen. É uma reconstrução da cidade, com casas dos séculos XVIII, XIX e XX e atores, que mostram como era a vida no século XIX.

Acho que é um programa interessante para quem tem mais tempo na cidade, especialmente para quem viaja com crianças.

E, para quem gosta de fotografia, esse site mostra alguns outros lugares na cidade que merecem uma visita.

Se você também vai conhecer Oslo, descubra um pouco sobre essa cidade interessantíssima nesse post. Nele eu te conto sobre o parque de esculturas mais estranho do mundo, sobre o bairro hipster Grünerløkka e sobre o quadro “O Grito”, o mais famoso do pintor norueguês Edvard Munch.