Quem já pesquisou um pouquinho sobre o que fazer na Bélgica, com certeza já sabe sobre Bruxelas, a capital, e Bruges, a cidade medieval que é visitada por 9 milhões de turistas a cada ano.

Mas pouca gente ouviu falar de Gante (Gent, em holandês), a cidade belga com o maior número de edifícios protegidos, ou seja, prédios com alto valor cultural e histórico.

Assim como Bruges, canais e prédios medievais fazem de Gante um charme. Mas, diferentemente da vizinha, Gante é também uma cidade industrial e universitária. A Universidade de Gante, com 44 mil estudantes (quase 20% da população), é uma das mais importantes do país.

Falando em população, Gante é bastante grande para padrões belgas: com 260 mil habitantes, é a segunda cidade mais populosa do país.

Para quem quer andar por uma cidade medieval ao mesmo tempo em que anda por uma cidade belga moderna, Gante é, com certeza, uma ótima escolha.

Esse vídeo dá uma boa ideia sobre como é a vida na cidade, que começou como uma comunidade monástica, assim como tantas outras da Europa.

Foi sua localização privilegiada, entre os rios Lys e Scheld, que possibilitou que ela se tornasse uma das cidades medievais mais importantes.

O campanário, uma das três torres da cidade, é um sinal disso. Assim como o imponente Castelo dos Condes.

E foi em Gante que nasceu Carlos de Habsburgo, um dos mais importantes imperadores da Europa, que, no século XVI, governou da Espanha tanto o Império Espanhol quanto o Sacro Império Romano Germânico.

Vem comigo conhecer essa ilustre desconhecida chamada Gante.

Origem

Foi São Amando, um missionário do século VII, quem fundou a pequena comunidade monástica com uma capela nas proximidades do rio Scheldt.

Alguns anos depois, ele construiu uma segunda igreja, bem na região onde os rios Lys e Scheldt encontram-se. Essa área era conhecida como Ganda (que, em idioma celta, significa confluência), e é daí que vem o nome da cidade.

Mais tarde essas duas igrejas virariam a Abadia de São Pedro e a Abadia de São Bavo, respectivamente.

As ruínas dos dois prédios ainda podem ser visitadas. As ruínas da abadia de São Bavo ficam a cerca de 1km do centro histórico.

Já as ruínas da abadia de São Pedro ficam um pouco mais afastadas. Quem vai visitá-las pode conhecer também o Museu Histórico de Gent, que fica num prédio do século XIII (antiga Abadia de Bijloke, que foi usada como hospital por 700 anos).

Cidade das três torres

Três torres formam o skyline medieval de Gent: a do Campanário, a da Catedral de São Bavo e a da Igreja de São Nicolau.

Um dos melhoros pontos de observação para ver as três alinhadas é a ponte de São Michel (Sint-Michielskerk).A primeira torre na foto é a da catedral. Ali existia uma igreja já no ano 942. Sua cripta ainda existe e pode ser visitada. A catedral foi construída no mesmo local alguns séculos mais tarde.

Ela é hoje uma das principais atrações turísticas da cidade porque lá está o políptico (conjunto de várias pinturas formando uma única imagem) “A Adoração do Cordeiro Místico” (The adoration of the mystic lamb), que é considerada uma das obras de arte mais importantes da história.

Ele foi pintado em Gante, em 1432, pelos irmãos Van Eyck. Um deles, Jan van Eyck, é um ícone na história da arte: ele é considerado o pai da pintura à óleo (oil on canvas), técnica largamente utilizada a partir de então.

Esse vídeo (em inglês, 6 minutos) explica o quadro e dá 8 motivos para vê-lo de perto.

Outro motivo para visitar a catedral é ver um quadro de Peter Paul Rubens, um dos mais importantes artistas do século XVII. Seu quadro A Conversão de São Bavo está lá.

Para quem quer saber mais sobre arte europeia: nesse post eu escrevi sobre meu passeio no Louvre com uma doutora em História da Arte.

Voltando para as torres medievais de Gante: a segunda é o campanário municipal (Belfort em holandês, belfry em inglês), fácil de identificar pelo dragão no alto (olhando de baixo, parece mais uma galinha, hehehehe).O campanário  foi construído em 1313. Esse tipo de torre era um símbolo de prosperidade das cidades e, por isso, permite identificar as cidades medievais mais ricas e importantes.

Os campanários tinham função de torre de vigia, alarme e relógio. E, por costumarem ser o lugar mais seguro das localidades, também abrigavam o arquivo municipal, o tesouro e, muitas vezes, a prisão.

A terceira e última torre é a da Igreja de São Nicolau (St Niklaaskerk), padroeiro dos comerciantes e dos marinheiros, que foi construída algumas décadas antes do campanário. Sua torre central tinha essa função até a construção do atual campanário.

Essa igreja fica bem pertinho da ponte de São Michel (Sint-Michielskerk), uma das regiões mais bonitas da cidade.

Crescimento e auge da cidade medieval

O crescimento de Gante foi consequência de vários fatores. Pra começar, a cidade ficava no Condado de Flandres, que, embora devesse vassalagem à França, teve muita autonomia até o século XV.

E, dentro do condado, a cidade conseguia manter sua autonomia frente aos condes graças ao poder dos mercadores de Gante. O mesmo acontecia em Bruges e Ypres, as outras grandes cidades de Flandres naquela época.

Gante tinha um porto importante (ainda hoje no coração da cidade), que era um grande centro de comercialização de cereais. A cidade também tinha o monopólio sobre a lã inglesa, com a qual produzia tecidos e roupas de luxo muito valorizadas na época.

Pode-se dizer que até o ano de 1302 essas cidades foram controladas por famílias de mercadores ricos. Mas, a partir desse ano, houve um rearranjo de forças na região.

Um pouco antes haviam surgido as primeiras associações de trabalhadores, que eram chamadas de guilds. Para tentar enfraquecer os mercadores, os Condes aliaram-se aos guilds de Gantes, Bruges e Ypres.

Mas, em função do comércio de lã, os guilds tinham relações com a Inglaterra, que era inimiga da França. Os mercadores da cidade, ao sentirem-se ameaçados pela união dos condes aos guilds, pediram ajuda ao rei francês, alegando que eles estavam sendo apoiados pela Inglaterra.

Um dos resultados mais importantes dessas alianças foi a batalha de Courtrai ou batalha das esporas douradas (Golden Spurs, 1302), um conflito no qual o exército francês, o mais poderoso do mundo na época, foi derrotado pelos guilds de Flandres, que contavam com o apoio da população.

Rapidamente os guilds de Bruges e Ypres passaram a controlar suas cidades, mas os de Gent estavam divididos. Isso deu espaço para os mercadores e as lutas por poder geraram inúmeros conflitos.

Foi Jacob van Artevelde, que hoje tem uma estátua no meio da praça Vrijdmarkt, quem resolveu temporariamente essas diferenças.davEsse mercador conseguiu ser reconhecido como uma liderança pelos trabalhadores, estabelecer uma aliança entre os guilds e evitar o envolvimento de Gante na guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra. 

Enquanto ele viveu, os guilds foram a força dominante na cidade. Mas, quando ele foi assassinado, os guilds voltaram a lutar entre si, perderam poder e, algumas décadas depois, a cidade estava submetida aos condes de Flandres.

A Praça Vrijdamarkt, onde fica a estátua de Artevelde, é palco de eventos importantes da cidade desde 1199, entre eles uma feira semanal, muitas celebrações e, também, execuções e massacres.

Quem visita a praça também vê muitos prédios do século XVIII, hoje transformados em restaurantes e bares, incluindo o curioso Dulle Griet.davA cerveja especial da casa é a Max Van Het Huis, uma Golden Ale muito popular por lá. Mas eles servem essa cerveja só em um copão de 1,2 litros. Sim, uma senhora cerveja!

O que acontece é que tinha gente roubando o copo. E eles acharam uma solução interessante: quem pede a cerveja, deixa um pé de sapato em uma grande cesta no meio do bar. Pra ganhar o sapato de volta, só devolvendo o copo.

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Mesmo quem não pretende beber tanto vai aproveitar uma visita ao bar, que tem um ar medieval e cerca de 250 tipos diferentes de cerveja.

Castelo dos Condes

Não podemos terminar essa história sem falar em Gravensteen, o Castelo dos Condes.Os Condes de Flandres, já no século IX, haviam construído uma fortificação de madeira na cidade, no local onde hoje encontra-se esse castelo.

Ela foi substituída por uma luxuosa mansão, cercada por um muro de pedra, e, em 1180, Filipe da Alsácia transformou o prédio, construindo o castelo com o estilo e forma que ele tem hoje.

Como os mercadores e guilds de Gent eram muito rebeldes, os condes não usavam esse prédio como residência permanente.

A existência do castelo era bastante simbólica, pois sinalizava à população que a nobreza exercia poder sobre a cidade. E, nele, os nobres encontravam abrigo quando atacados pela rebelde população de Gante.

O castelo pode ser visitado, saiba como nesse post do blog Contando Destinos.

Para quem gosta de castelos, há outro na cidade, bem mais modesto. É o Castelo de Gerald, o Diabo (Castle of Gerald the Devil).

E quem gosta muuuito de castelos vai gostar desse post do blog Cheese Web, que mostra outros 11 que podem ser visitados na Bélgica.

Decadência

O auge do poder de Flandres foi nos séculos XIV e XV, sob governo da dinastia Valois-Burgundy (1363-1477).

Mas, depois do casamanto da última Burgundy, Maria de Borgonha (Mary of Burgundy), com Maximiliano de Habsburgo, o território de Flandres dividiu-se: parte foi retomada pela França, parte passou para o poder do Sacro Império Romano Germânico. A população de Gante tem, até hoje, uma mágoa especial com o que veio depois.

O neto de Maria de Borgonha, que se tornou Carlos I, imperador do Sacro Império Romano Germânico e do Império Espanhol, nasceu na cidade (1500). Mas sediou sua corte na Espanha e impôs pesados impostos contra Gante.

Entre outras coisas, isso atrapalhou a construção da prefeitura (Stadthuis), o prédio mais importante dessa fase. Que acabou ficando com uma interessante mistura de arquitetura gótica e renascentista.

A fachada norte, construída entre 1518 e 1535, tem estilo gótico flamboyant. Já a fachada leste, construída entre 1559 e 1618, tem estilo renascentista, com colunas coríntias, dóricas e jônicas e pilares inspirados nos palácios italianos.sdrOs habitantes da cidade não aceitaram o aumento de impostos sem luta. Mas, ao serem derrotados, foram profundamente humilhados. A cidade teve que pagar ainda mais.

E os nobres da cidade, líderes da revolta, foram obrigados a desfilar por Gante de pés descalços e com uma forca no pescoço.

Por esse motivo, a população passou a ser chamada de noose bearers, que significa “aqueles que estão na forca”.

A situação da cidade piorou durante a Guerra dos Oitenta Anos (1566 – 1648), quando 17 províncias da região onde fica hoje Holanda e Bélgica tentaram tornar-se independente do Império.

Algumas conseguiram e formaram um novo país, a Holanda. Mas as províncias que formariam mais tarde a Bélgica, não.

Em meio às disputas de espanhóis e holandeses que vieram depois, Gante perdeu seu acesso ao mar.

Para piorar, na mesma época a Inglaterra aumentava sua produção de tecidos e reduzia drasticamente as exportação de lã. Gante precisou passar a produzir tecidos com lã espanhola, de pior qualidade, o que prejudicou seriamente os lucros da fase anterior.

A consequência disso tudo é que, no século XVII, Gante perdeu sua importância internacional.

Recuperação

A cidade só voltaria a crescer no final do século XVIII, quando passou a ser parte do Império Francês revolucionário.

No fim, Napoleão perdeu a guerra ali perto. Mas a cidade continuou a crescer graças à retomada da industrializaçao e à construção de um novo porto.

O antigo porto, onde muitos prédios medievais ainda existem, é hoje uma excelente imagem da cidade vibrante e cheia de jovens que Gante se tornou. Os efeitos negativos de tanta juventude também apareceram: os prédios históricos estavam começando a ser alvo de pichação.

O governo resolveu isso criando uma área onde é permitido pichar. É a rua de pedestres Werregaren, entre o antigo porto e a prefeitura.Mas o que melhor representa a cidade moderna é o Stadshal, um espaço construído em 2012, como parte de um projeto para renovar as praças e espaços públicos da cidade, e que divide a opinião dos moradores.

Ideia dos arquitetos flamengos Robbrecht e Daem, a estrutura em aço e madeira tem inspiração na forma típica das casas da região, com cume escalonado, e nas “casas longas” do período neolítico, quando várias famílias viviam sob o mesmo tempo.Os críticos deram ao prédio o apelido de “grande celeiro”.

Para os mais interessados em arquitetura, recomendo a leitura desse artigo do blog The Culture Trip. Ele fala de 11 prédios de Gante, incluindo vários dos que citei nesse post.

O melhor de Gante

Mas o que mais gostei foi de ter tempo para simplesmente me perder pelo centro da cidade.

A área nas margens do rio Lys e seus arredores, em especial entre a Ponte de São Michel e o Museu Van Alijn, é muito fofa!

Lojas, restaurantes, cafés como o Alice (precisa reservar, pelo menos no domingo), muitas casas antigas e gente de todas as idades e culturas circulando pelas ruas antigas… uma delícia!

E uma obra de arte muito especial: uma instalação do artista Alberto Garutti conecta as maternidades da cidade às luzes da praça que fica na frente do Castelo dos Condes (Sint-Veerleplein).

Cada vez que um bebê nasce, os pais podem apertar um botão no hospital, e isso faz com que as luzes da praça comecem a piscar, avisando à cidade sobre a chegada da nova criança ao mundo.

Para saber mais sobre essa obra, que está também em outras cidades do mundo, clique aqui.