Andar pelo Bairro das Letras, onde viveu Cervantes. Visitar o Museu Reina Sofia, onde está Guernica, a obra-prima de Picasso. Passar horas em um parque que já foi jardim de reis. Provar pinchos e tapas em Tabernas e Tascas. Tem tudo isso nesse trecho de apenas 6 km entre a Plaza Mayor e o Parque del Retiro.

Até daria para caminhar todo esse trecho em pouco mais de uma hora. Mas é impossível andar em linha reta nessa região.

Primeiro porque as ruas são mesmo tortas – quando a gente acha que está indo para um lado, vai parar no outro!

E, principalmente, porque há tanto para conhecer, que a gente vai parando o tempo todo pelo caminho.

Uma Praça que é chamada de Porta

A Puerta del Sol é hoje uma praça onde dez ruas da cidade se encontram.

Mas, no passado,  ela foi uma das portas de Madri.

Ela ficava na quarta muralha da cidade, a Cerca de Arrabal, construída no século XV.

madrid cerca de arrabalFonte: Urban Networks

Na Puerta del Sol fica a estátua “O Urso e o Madronho”, uma das mais fotografadas da cidade.

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A estátua é recente. Mas a imagem do urso com o madronho tem 800 anos.

O urso faz parte do Escudo da cidade desde 1212, quando foi criada sua segunda versão.

urso 1212

Segundo o historiador Juan Carlos González, a escolha do urso pode ser simplesmente porque havia muitos na região. E era comum associar cidades a animais naquela época.

Pode ser também uma referência à constelação Ursa Maior, já que ela tem sete estrelas principais, numa formação similar ao desenho das sete estrelas no urso.

Inclusive, essa é a grande polêmica: se é um urso ou uma ursa.

Já a árvore, o madronho, apareceu na quarta versão do escudo, quando houve uma separação entre a Igreja e a Administração da Vila de Madri.

Ao fim da disputa, ficou decidido que a Vila seria “dona das árvores” (de terrenos onde havia esse arbusto mediterrâneo, o madronho) e da caça da região; enquanto que a Igreja seria dona dos pastos e terras.

Cada um deles criou então seu próprio escudo.

No escudo da Igreja, o urso pastava, para deixar claro que os pastos pertenciam à Igreja.

urso 1222 igreja

E a Vila de Madri incluiu no seu Escudo o madronho, para deixar claro que as árvores eram suas:

urso 1222 cidade

E essa é a imagem que vemos na Puerta del Sol hoje.

Os madronhos, que eram abundantes na cidade no século XIII, deixaram de existir por lá no século XVI.

Duzentos anos depois, as árvores começaram a ser trazidas de outras regiões da Espanha. Esse artigo do jornal ABC conta onde vê-los atualmente.

O Escudo passou por algumas variações ao longo dos séculos, mas o urso e o madronho sempre permaneceram.

A versão atual, usada desde 1967, e que pode ser vista em vários lugares da cidade, é essa.

madrid urso

Esse post do blog Rutas con Historia conta mais sobre todas as versões do Escudo.

Essas imagens são da parede da Taberna El Madroño (Plaza de la Puerta Cerrada, 7), onde se pode provar o licor da fruta.

Ponto Central de Madri

A Puerta del Sol é também o Quilômetro Zero da cidade, ponto de origem de todas as estradas. Na praça tem uma placa marcando esse lugar.

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Ela fica na frente da Real Casa de Correos, o edifício mais antigo da praça, construído no século XVIII.

É o relógio desse prédio que marca a virada de ano-novo na Espanha.

Uma multidão se reune na Puerta del Sol na noite de 31 de dezembro, para celebrar a virada bebendo cava (espumante espanhola) e comendo uvas, tradição de Réveillon na Espanha.

A praça também é o lugar perfeito para quem gosta de compras.

Lá tem uma loja gigante do El Corte Ingles, uma das mais importantes empresas espanholas, com mais de 100 anos.

E muitas, muitas, muitas outras lojas, seguindo por qualquer uma das dez ruas que se encontram na Puerta del Sol. Especialmente nas que vão em direção à Gran Via,  que é o grande boulevard da cidade.

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Para saber mais sobre essa área, sugiro dois posts.

Esse, do blog Por las Calles de Madrid, conta a evolução da praça, do século XV até os dias de hoje.

Já esse, do blog Urban Networks, fala sobre cada uma das dez ruas que se encontram ali.

Bairro das Letras

Nesse charmoso trecho do centro de Madri viveram os grandes literatos do Século de Ouro Espanhol (séc XVII), incluindo Cervantes e Lope de Vega.

barrio de las letrasFonte: barrioletras.com

Cervantes, autor de Don Quixote, o segundo livro mais traduzido do mundo (fica atrás só da Bíblia), morou na Calle Lope de Vega.

Lope de Vega, o dramaturgo de maior sucesso de sua época, viveu na Calle Cervantes.

Sua casa, que virou o  Museu Lope de Vega (Calle Cervantes, 11), é considerada o melhor exemplo em Madri de como era a vida no século XVII.

Conterrâneos, Lope de Vega (1562- 1635) era “o mais apreaciado pelo povo de Madri”, enquanto que Cervantes (1547 – 1616) era “o taciturno, pouco apreciado”.

Também viveram no bairro Francisco Gomez de Quevedo (1580 – 1645) e Luis de Góngora (1561 – 1627), ambos poetas, mas “rivais e inimigos”.

Esse vídeo (em espanhol, 4 minutos) fala sobre a vida no bairro naquele tempo.

Na Calle de las Huertas, uma rua de pedestres, ficavam, naquela época, as casas de prostituição.

Hoje, a rua é pura poesia: pelas calçadas estão trechos das obras de todos esses autores, em letras douradas.

A gente caminha quadras e quadras olhando para o chão, mas, também, sem querer perder o que está ao nosso redor.

Como El Jardín del Angel, essa floricultura fofa, que fica onde era antes o cemitério da Igreja de San Sebastian.

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Ali pertinho fica a Plaza Santa Ana, rodeada de bares e cafés.

No centro, uma estátua de Federico García Lorca, um dos maiores poetas e dramaturgos espanhóis do século XX.

Várias peças de Lorca, incluindo “La Zapatera Prodigiosa” e “Yerma” tiveram sua estreia no Teatro Español, fundado em 1582, que também fica na praça.

O bairro tem uma vida boêmia riquíssima. Há bares por todos os lados, e dá para diferenciá-los em dois grupos: os que ficam ao redor dessa praça e os que ficam mais em direção ao Paseo del Prado, em especial na Plaza e na Calle de Jesus.

Tapas & Pinchos, Tabernas & Tascas

“Ir de Tapas” é uma tradição na Espanha. Na prática, isso significa ir de bar em bar, pedir uma bebida e ganhar de graça uma porçãozinha de comida.

Os bares na Espanha também são comumente chamados de Tabernas, Tascas e Cervecerías.

Esse post do blog El Secreto del Exito de los Bares define o que diferencia uns dos outros.

Em resumo, bar é o nome genérico dos estabelecimentos que vendem bebida alcoólica e não-alcoólica para ser tomada no balcão.

Taberna vem do latim e significa a mesma coisa.

Já Tasca é uma palavra portuguesa, que significaria “casa de jogo de má fama”. E que, com o passar do tempo, passou a significar “estabelecimento onde se serve vinho e refeições ligeiras a baixo preço“.

E Cervecería… bem… esse a gente sabe. 🙂

Quando a gente está num desses lugares em Madri e pede uma bebida, ela vem acompanhada de Tapas ou Pinchos.

A diferença é que Tapas são realmente um pratinho de comida (azeitonas, tortilla, etc).

E Pinchos são as fatias de pão cobertas com queijo, presunto e várias outras gostosuras.

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A história de dar comida de graça tem origem nebulosa.

Conta a lenda que o rei Afonso X de Castilha (1221 – 1284), quando se recuperava de uma doença, passou a tomar sua bebida sempre acompanhada de pequenas porções de comida.

Ele ficou curado e gostou tanto da experiência, que decretou que todas as bebidas no reino, a partir de então, deveriam ser servidas com um pratinho de comida.

Chamar a porcãozinha de comida de Tapas é coisa nova. Aparentemente isso surgiu no século XX, quando outro rei Afonso, o XIII, estava em Cádiz, no sul da Espanha. Lá venta muito.

Dizem que o rei parou num bar e pediu um copo vinho. O dono do boteco se preocupou: e se entrasse areia na bebida?

A solução: colocou o presunto que acompanhava o vinho em cima do copo, como uma tampa (tapa, em espanhol).

O rei gostou tanto, que outros bares começaram a fazer o mesmo. E, assim, a comidinha grátis que acompanha a bebida passou a ser chamada de Tapas.

Ir de Tapas, parte 1: entre a Plaza Santa Ana e a Calle de las Carretas

Nessas ruas labirínticas há muitos, muitos bares.

Eu participei de um Tour de Tapas (que recomendo para quem estiver sozinho na cidade e preferir ir para os bares em grupo) e os três bares em que fomos ficam nessa região.

Nessa área fica também o Matador (Calle Cruz, 13), que é conhecido por produzir a melhor tortilla da cidade. Dizem que o segredo é chegar às 21h, quando as tortillas da noite estão ficando prontas.

Meu guru de viagens favorito, Rick Steves, indica esses três bares, que ficam praticamente do lado um do outro: La Oreja de Jaime, Casa Toni e La Casa del Abuelo.

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Dos bares em que fui, recomendo o Museo del Jamon. É uma rede, com várias lojas em Madri. Seu princial atrativo é, claro, presunto.

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Mas também a comida e a cerveja sao bons e baratos. Um copo de cerveja custa apenas 90 centavos de euro.

E as opções de comida, super típicas, estão aqui:

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As lojas do Museo del Jamón estão sempre cheias, com turistas e madrileños compartilhando o balcão. Um astral bem legal!

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Ir de Tapas, parte 2: Calle de Jesus

A segunda região com concentração de bares fica na Calle e na Plaza de Jesus, perto do Paseo del Prado.

Lá ficam algumas das Tabernas e Cervecerías mais tradicionais da cidade, incluindo a Taberna La Dolores, uma das mais antigas, fundada em 1908.

Vai ter turistas, porque ela aparece em praticamente todos os guias sobre Madri. Mas vai ter madrilenho também, afinal, eles sabem que o chopp e os tapas são de primeira.

Esse blog tem um vídeo curtinho sobre a Plaza de Jesus e mostra essa taberna.

Um pouquinho adiante, ao lado uma da outra, estão Cervezas La Fabrica, El Rabano e Los Gatos.

O que é ótimo, já que “ir de tapas” pressupõe entrar em pelo menos dois ou três bares na mesma noite.

A Cervezas de La Fábrica serve, além de chopp, vinho e cava. E tem um menu bem variado.

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A Cerveceria Los Gatos é um bom lugar para provar pinchos. O Variado de Tostas, por exemplo, é um prato que tem um pouquinho de cada coisa.

Ela fica do lado do El Rábano, tasca conhecida pelos pratos com rabo de touro.

O Rabo de Touro Estofado é um dos pratos mais típicos da cozinha espanhola.

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Já na Taberna de la Daniela, a especialidade é o Cocido Madrileno, feito de grão de bico, legumes e carnes.

Eles servem também Besugo a la Madrileña. O besugo é um peixe de águas frias, assim como o salmão, o atum e a tutra.

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Além desses e outros bares do Bairro das Letras, dá para ir de tapas em qualquer lugar da cidade. Para algumas recomendações, sugiro esse artigo do jornal The Guardian.

Triângulo dos Museus

A 200 metros da Plaza de Jesus fica o Paseo del Prado, uma avenida larga, com um caminho para pedestres no meio.

Ele foi construído no século XIV, onde ficava o antigo prado (campo) dos monges jerônimos de Santa Maria del Passo.

Do monastério onde eles viviam ainda existem dois prédios, o claustro e a igreja.

Nessa igreja aconteceram fatos históricos do país, como a coroação de Felipe II como Príncipe de Asturias (1528) e a proclamação de Juan Carlos como rei da Espanha (1975), ao final da ditadura de Franco.

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Bem na frente da Igreja fica o Museo del Prado, inaugurado em 1819.

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Seu catálogo inicial era formado pela coleção real, que vinha sendo formada desde o século XVI, pelas monarquias Habsburgo e Bourbon.

Graças a essas famílias reais, podem ser vistas no museu obras como “As Meninas”, de Velasquez.

as meninas velasquezDiego Velázquez [Public domain], via Wikimedia Commons

No Prado também estão as pinturas mais importantes de Goya, passando por suas diferentes fases e incluindo “La Maja Desnuda” , “El Três de Mayo en Madrid”, “La Familia de Carlos IV” e “Saturno Devorando a un Hijo“.

O Museo do Prado é o segundo museu mais visitado da Espanha. Sua especialidade, além de pintura espanhola, é arte europeia clássica. Lá também podem ser vistos clássicos,  por exemplo, de Raphael, Rubens e Rembrandt.

A continuação do Museu do Prado está no Museo Nacional Reina Sofia. Lá estão ícones do século XX, com destaque para Guernica, a obra-prima de Pablo Picasso.

Também há muitos quadros de Salvador Dalí e de Juan Miró.

O museu inclui outras artes. Expõe, por exemplo, o documentário “Las Hurdes: Tierra sin pan” (1933), de Luis Buñuel.

Ele é o museu mais visitado da Espanha e o nono mais visitado do mundo.

Completa o Triângulo o Museo Thyssen-Bornemisza, o quinto mais visitado da Espanha.

Quando ele foi inaugurado, em 1992, abrigava a coleção de pinturas da família de mesmo nome. As obras foram adquiridas pelo estado espanhol no ano seguinte.

Trata-se, principalmente, de pintura europeia não-espanhola.

É uma boa amostra da arte do século XIV ao XX, incluindo Caravaggio, Degas, Van Gogh, Cézanne, entre outros.

Parque del Retiro

Bem atrás do Museo do Prado fica um de meus lugares favoritos em Madri, o Parque del Retiro.

Ele é enorme, bem cuidado e me recebeu com dias maravilhosos de sol e céu azul.

Lembra do Monastério dos Jeronimos de que falei há pouco? Antes de Madri ser a capital da Espanha, ele era também o retiro, praticamente uma casa de campo, dos reis Habsburgos (que viviam em Toledo).

A corte mudou-se para Madri em 1561 (nesse post eu conto mais sobre isso) e instalou-se na área onde está hoje o Palácio Real. Mas continuou frequentando o monastério.

Até que, em 1630, por ordem de Felipe IV, começou ali a construção de um palácio, o Palácio del Retiro.

Ao seu redor foram feitos os jardins, incluindo o Lago Grande (Estanque Grande) e o Lago dos Sinos (Estanque de las Campanillas).

Esse é o Lago Grande.

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Outros elementos foram adicionados com o passar do tempo. E, em 1868, o parque foi aberto ao público.

Esse é o Palácio de Cristal.

Ele foi construído em 1887 e é hoje uma sala de exposições.

O melhor é o seu entorno.

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Esse cantinho escondido é chamado de Os Jardins de Cecílio Rodriguez (nome do paisagista / jardineiro que o criou).

Imperdível. Uma paz incrível, já que pouca gente percebe que ele está ali, escondido entre muros.

Além da paz, a gente encontra lá esses pavões reais lindos.

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Pra saber mais sobre o Parque do Retiro: esse post tem uma mapa bem útil. Esse outro, do blog Mirador Madrid, fala de cada um dos cantinhos do parque.

Cuesta de Moyano, a feira de livros permanente de Madri

Saindo do Parque del Retiro pela Puerta del Ángel Caído a gente chega na Cuesta de Moyano, uma feira de livros que abre todos os dias, desde 1925.

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São 30 bancas, milhares de livros, vários idiomas, temas, períodos, muitas raridades.

Esse site conta a historia dos 30 livreiros. Por exemplo, a de Don Alfonso Riudavets, que desde 1968 é o dono da banca 15.

madri moyanoFoto: territoriomoyano.org

A prefeitura da cidade, buscando contribuir para a modernização da feira, criou o projeto Territorio Moyano.

Ele é um fórum para os livreiros e vem promovendo nos últimos anos vários eventos, como palestras, leituras para crianças, oficinas de ilustração.

Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.

Pra terminar

Esse vídeo é longo, mas recomendo para quem vai a Madri ou quer saber mais sobre esse área da cidade.

Ele mostra toda essa região sobre a qual escrevi e um pouco mais.

Fala, por exemplo, do Monumento à Cibeles, deusa da terra e da fertilidade. É o lugar de celebração das vitórias do Real Madri.

E da Estação de trens Atocha, decorada internamente com um jardim tropical.

O vídeo é em espanhol e tem 30 minutos.