No sul do Brasil, o termo galego é usado como referência a pessoas loiras, de pele, cabelo e/ou olhos claros. Em outras regiões do país, galego também é usado como referência a qualquer estrangeiro.

Mas isso não pode ser mais distante da verdade. Galego é quem nasceu na Galícia, uma região da Espanha. E nem todo mundo que nasce lá é loiro de olhos azuis.

Afinal, o que é a Galícia?

A Galicia é uma Comunidade Autônoma espanhola formada por quatro províncias: Pontevedra, Ourense, Lugo e A Coruña.

Elas compartilham uma história comum: há dois mil anos, no tempo do Império Romano, essa região formava uma única província chamada Gallaecia.

O nome que a região tinha no Império Romano sobreviveu – caso único na Península Ibérica.

Mais do que isso: o território da atual Galícia é praticamente o mesmo da antiga Gallaecia.

Parte do desenvolvimento dessa região deve-se a um santo: São Tiago (Santiago, em espanhol). A descoberta de seu túmulo na Galícia deu origem a uma das mais importantes rotas de peregrinação do mundo: o Caminho de Santiago.

O resultado de tudo isso é uma região cheia de história, com muitas construções antiquíssimas, de muralhas romanas a castelos medievais. Além disso, a região tem um idioma próprio, o galego.

Tudo isso em uma paisagem lindíssima. A Galícia é uma das áreas mais verdes da Espanha e tem um litoral de 1.500 quilômetros, embelezado por várias ilhas e enseadas (chamadas de rías).

A Galícia Antes dos Romanos

Antes da chegada das legiões romanas, viviam na Península Ibérica (atual Espanha e Portugal) vários povos nativos, que hoje conhecemos como celtas, íberos e celtíberos.

Os povos celtas que viviam no extremo noroeste, acima do rio Douro, eram chamados pelos romanos de galaicos. Esses povos tinham em comum o fato de viverem em pequenas vilas formadas por casas de pedras, que hoje chamamos de castros.

É possível ver vestígios arqueológicos de muitos deles na região. O destaque é o Castro de Santa Tegra, na fronteira com Portugal.

Os galaicos resistiram à ocupação romana por quase cem anos, mas foram finalmente dominados no ano 22 A.C.. É dessa época um dos mitos fundadores da cultura galega: a Batalha do Monte Medulio.

Contam os historiadores romanos que o último grupo da resistência galaica, cercado depois de muitas décadas de guerrilha, teria preferido suicidar-se a ser escravizado.

Até hoje não se sabe exatamente onde fica o Monte Medulio, mas a ideia de preferir a morte do que perder a liberdade faz parte do “espírito galego”.

Os romanos também fizeram chegar até nós uma lenda que diz que, no extremo noroeste, havia um “altar ao sol” (Ara Solis), construído e utilizado pelos fenícios séculos antes.

O lugar onde esse altar estaria foi chamado pelos romanos de Finis Terrae (fim da terra). Hoje esse cantinho da Europa é chamado de Finisterre (em espanhol) ou Fisterra (em galego).

Muitos peregrinos do Caminho de Santiago esticam a caminhada até esse local, como fez o personagem de Martin Sheen no filme The Way.

Eu fui até lá de carro e encontrei muitos peregrinos com suas mochilas nas costas celebrando a chegada no marco zero.

Essa região da costa é super recortada, cheia de penhascos, e, por isso, é conhecida como Costa da Morte.

E de lá vem um dos pratos típicos mais bizarros que já comi. É o percebe, um crustáceo que vive escondido nas rochas onde batem violentas ondas do mar.

Há séculos habitantes da região arriscam a vida para coletá-los quando a maré baixa. Hoje o percebe é considerado uma iguaria. Tive que experimentar.

A Galícia Durante o Império Romano

Na estrutura administrativa do Império Romano, a região onde os galaicos viviam passou a ser chamada de Gallaecia.

No século III, ela chegou a ser uma província autônoma, com governo próprio.

Nessa época, as fronteiras da Galícia estendiam-se do mar Cantábrico ao rio Douro, incluindo o que é hoje o extremo norte de Portugal (Bracara, na parte inferior dessa imagem, é a atual cidade portuguesa Braga).

Fonte: Let’s Teach Europe

Outro grupo de povos celtas vivia na Galícia: os astures. Logo as principais cidades da província romana seriam Bracara Augusta (a atual Braga), Asturica (a atual Astorga) e Lucus Augusti (a atual Lugo).

As principais características desse período sob o Império Romano são a ampliação dos castros (as cidades pré-romanas), a construção de muralhas ao redor das principais cidades (das quais a de Lugo resiste até hoje) e a introdução de práticas romanas: o cristianismo como religião e o latim como idioma.

O Reino dos Suevos

A partir do final do século IV, povos germânicos (conhecidos como bárbaros) começaram a invadir a Península Ibérica e a dividir os territórios romanos entre si.

No ano 419, o Império Romano se viu forçado a aceitar a perda da Galícia para um desses povos: os suevos.

Os suevos transformaram a Galícia de província romana em seu próprio reino. O Reino dos Suevos, que também era chamado de Reino da Galícia, existiu até o ano 586.

O Reino Suevo da Galícia era ainda maior do que a província romana: para o sul, ele estendia-se até o rio Mondego, onde fica a atual cidade portuguesa Coimbra.

Ele deixou de existir porque um outro povo germânico, os visigodos, que chegou na Península Ibérica pela mesma época, acabou tornando-se dominante e conquistando o Reino Suevo.

Com isso, a partir do ano 586, como no tempo dos romanos, a Península Ibérica (atuais Portugal e Espanha) estava mais uma vez sob controle de um único rei.

O reino visigodo (sobre o qual já falei aqui) era um reino cristão, que mantinha relações com a Igreja Romana e que tinha uma nobreza muito parecida com a nobreza de outros países europeus na época.

Na prática isso significava uma disputa constante por poder entre diferentes grupos políticos.

E, numa dessas escaramuças entre cristãos, um dos nobres visigodos resolveu pedir ajuda para um povo muçulmano que vivia no norte da África.

E isso mudou tudo!

Fronteiras Móveis: Invasões Muçulmanas e Reconquista Cristã

Os muçulmanos ajudaram aquele nobre cristão. Mas gostaram tanto do que viram na Península Ibérica que resolveram ficar.

Em menos de dez anos, povos muçulmanos (berberes e árabes) assumiram o controle de praticamente toda a península.

A nobreza cristã precisou fugir de sua capital, Toledo, e encondeu-se atrás da Cordilheira Cantábrica, na mesma região onde viviam os povos celtas astures antes da chegada dos romanos.

Eles chamaram aquele pedaço de terra de Reino de Astúrias.

Isso marca o começo do período histórico que ficaria conhecido como “A Reconquista” (720 – 1492). Mas o que isso tem a ver com a história da Galícia?

Bem, aos pouquinhos, esse grupo de cristãos, que logo estabeleceu sua capital em Oviedo, foi ampliando sua área de controle.

E uma das primeiras regiões que o Reino de Astúrias recuperou dos muçulmanos foi o antigo Reino da Galícia. Com isso, o território cristão da Península Ibérica passou a ser chamado de Reino de Astúrias e Galícia.

A Descoberta do Túmulo de Santiago

No ano 813, o rei de Astúrias e Galícia, Afonso II, foi informado de que o túmulo do apóstolo Tiago (Santiago em espanhol) havia sido encontrado na Galícia.

Afonso II rapidamente visitou o local e ordenou a construção de uma igreja.

Foi assim que surgiu a cidade que hoje conhecemos como Santiago de Compostela, o destino dos peregrinos do Caminho de Santiago.

Afonso foi esperto e conseguiu usar o fato para atrair cristãos de toda a Europa até Santiago.

Caminho Francês. Fonte: pilgrim

Na medida em que crescia a peregrinação pelo norte da Espanha, os cristãos iam criando forças para expulsar os muçulmanos cada vez mais para o sul da península.

A circulação de peregrinos também promoveu o crescimento econômico da região. Isso favoreceu principalmente a cidade de Santiago de Compostela, que logo tornou-se a segunda principal cidade do reino.

O resultado é que, por três séculos, famílias galegas e asturianas (também chamadas de leonesas) revezaram-se no controle do reino.

As muitas disputas entre essas famílias, levaram ao surgimento de um novo país no século XII: Portugal.

No seu surgimento, Portugal era apenas a parte da Galícia abaixo do rio Lima. Ainda levou algum tempo para que esse novo país extendesse suas fronteiras até o Algarve (eu já contei essa história aqui).

Mais ou menos nessa mesma época, enquanto galegos e astures continuavam se revezavando no controle do reino, mais ao leste crescia um condado que logo tornar-se-ia dominante: Castela.

A partir de 1230, Castela, já um reino independente, assumiu definitivamente o controle de toda a região.

O Reino de Castela continuou expandindo-se pelos séculos seguintes, transformando-se no país que hoje conhecemos como Espanha (mais detalhes no meu post sobre a história da Espanha).

O Idioma Galego

Na época em que Galícia, Astúrias (também chamado de Leão) e Castela tinham mais ou menos a mesma importância na Península Ibérica, cada região tinha seu idioma próprio:

Fonte: Alexandre Vigo via Wikimedia Commons

Quando Portugal tornou-se independente e expandiu-se para o sul, Lisboa tornou-se capital. O idioma falado em Lisboa transformou-se no idioma português (com pequenas diferenças gramaticais mas muitas diferenças de pronúncia em relação ao galego).

Enquanto isso, no norte, o reino de Castela expandiu-se para o oeste. Ele logo controlaria Astúrias (Leão) e o que tinha sobrado da Galícia, criando o poderoso Reino de Castela (que mais tarde se transformaria na Espanha).

O idioma de Castela, o castelhano, tornou-se dominante. Ele passou a ser usado pelos nobres galegos. Porém, a população rural da Galícia continuou falando sua língua tradicional, o galego.

E foi assim que o idioma galego sobreviveu, como uma língua oral (não-escrita), por muito tempo.

Isso mudou no século XIX, época em que surgiram vários movimentos nacionalistas na Europa.

Na Galícia, a elite intelectual promoveu o Rexurdimento (que significa Renascença), movimento que resgatava o idioma e as tradições galegas.

Um marco desse período foi a publicação do livro Cantares Gallegos (1863), considerado a primeira grande obra literária em galego.

Sua autora, Rosalia de Castro, é um dos ícones da Galícia. Seu nome é atualmente nome de rua e de praça por toda a região.

No final do século XX, quando a constituição espanhola possibilitou a criação de Comunidades Autônomas com possibilidade de ter idioma próprio, o galego tornou-se língua oficial da Galícia (sendo hoje um dos quatro idiomas oficiais da Espanha).

Atualmente, o galego é ensinado nas escolas da Galícia, juntamente com o castelhano. O idioma também é usado pelos órgãos públicos e por vários jornais locais.

Pra quem fala português (especialmente o brasileiro) é muito fácil entender galego. Aqui tem um exemplo: “O galego é unha lingua irmá do portugués“.

Para escutar um pouco de galego, ouça o trecho que vai do minuto 2:58 ao 3:15 desse vídeo.

Esses são exemplos do galego que as pessoas falam na rua e aprendem nas escolas. O curioso é que existe também um movimento de “modernização” do galego.

Chamados reintegracionistas, os defensores dessa modernização propõe uma aproximação do galego ao português, que garantiria a sobrevivência do idioma no longo prazo.

Esse vídeo, produzido pela Associação Galega da Língua (AGAL), explica como transformar o galego aprendido nas escolas nesse galego moderno, chamado de galego internacional (que é, basicamente, português).

O vídeo é longo, mas se você assistir o trechinho que vai do minuto 2:16 até o 3:40, já vai entender o espírito da transformação.

A Galícia Moderna

Assim como o resto da Espanha, a Galícia passou por altos e baixos ao longo dos últimos séculos. Uma das características mais marcantes dessa região nos últimos duzentos anos foi a emigração.

Apenas entre 1880 e 1930, mais de um milhão e duzentos mil galegos abandonaram a região em busca de melhores oportunidades econômicas (veja tabela na página 17). A maioria deles foi para as Américas, e, especialmente, para a Argentina, Uruguai e Brasil.

Eu desconfio que é por isso que no Brasil o termo galego passou a ser utilizado como sinônimo de estrangeiro. E, como muitos dos estrangeiros que chegavam ao sul do Brasil nessa época eram europeus de pele, cabelos e olhos claros, provavelmente uma coisa levou a outra.

Nas últimas décadas, mais uma vez a emigração de galegos tem sido um fator relevante para a sociedade galega. Porém, há uma mudança no perfil de quem deixa a Galícia.

No passado eram os galegos pobres que partiam, em busca de condições mínimas de sobrevivência.

Atualmente a Galícia é uma região industrializada, com uma das menores taxas de desemprego da Espanha.

Fonte: Dados Macro

No século XXI, quem deixa a Galícia são as elites intelectuais, que vão em busca de melhores empregos em outras regiões da Espanha ou outros países da Europa. Com destaque para a Suiça, onde vivem 40 mil galegos.

Um indicador recente da importância dos emigrantes para a Galícia são os números das eleições de 2024: cerca de 18% dos eleitores galegos viviam no exterior, de forma temporária ou permanente.

Coincidência ou não, cada vez mais turistas visitam a Galícia. Foram mais de 1,6 milhões de turistas estrangeiros em 2023, voltando para o número recorde do período pré-pandemia.

A cidade mais visitada é Santiago, seguida por Vigo, A Coruña e Lugo.

Fonte: El Espanol

São cidades lindas, das quais falarei em um próximo post.

Cultura Galaico-Minhota

Não posso terminar de falar da Galícia sem mencionar os espigueiros.

Espigueiros (hórreos, em espanhol) são essas casas de pedra, feitas para secar milho e outros grãos.

Esse da foto fica a poucos metros do Castelo de Soutomaior, um dos mais bonitos castelos medievais galegos (saiba como visitá-lo aqui).

Mas você vai ver espigueiros por toda a parte, quando menos esperar: no campo, no meio das cidades, na beira da praia.

Eles são tão populares, que são também um souvenir bem comum:

Os espigueiros são, pra mim, a prova mais visível de que a Galícia, na Espanha, e o Minho, no norte de Portugal, já foram um dia a mesma região.

Se você leu meu post Portugal ao Norte do Porto já sabe que espigueiros são super populares por lá também.

Mas há outros indícios menos visíveis da antiga ligação entre as duas regiões, o que chamamos de cultura galaico-minhota. Os castros pré-romanos. As festas populares. E, sim, o idioma.

Quem mora acima e abaixo do rio Minho, se comunica tranquilamente em galego, a língua de nossos antepassados, que continua sendo o idioma corrente na região.